O ÚLTIMO SÁBADO...

Saddan, calmo e vestido de negro, foi executado antes do nascer do sol. O enforcamento deixa, todavia uma questão incontornável: uma nova era de liberdade e democracia não se constrói percorrendo os mesmos caminhos da barbárie, usando os métodos intolerantes que um dia considerámos abjectos e contra a Humanidade. A pena de morte continua a ser uma não-solução que, nestes casos, serve apenas circunstanciais propósitos políticos e de poder.
Portugal foi pioneiro na abolição da pena de morte e na renúncia à sua execução mesmo antes de abolida. Sobre isso, Victor Hugo disse em 1876: “Felicito a vossa nação. Portugal dá o exemplo à Europa. A Europa imitará Portugal.”
Cem anos mais tarde, no colóquio internacional comemorativo do centenário da abolição da pena de morte, realizado em Coimbra, Miguel Torga e Vergílio Ferreira falaram assim:
"A tragédia do homem, cadáver adiado, como lhe chamou Fernando Pessoa, não necessita dum remate extemporâneo no palco. É tensa bastante para dispensar um fim artificial, gizado por magarefes, megalómanos, potentados, racismos e ortodoxias. Por isso, humanos que somos, exijamos de forma inequívoca que seja dado a todos os povos um código de humanidade. Um código que garanta a cada cidadão o direito de morrer a sua própria morte". Miguel Torga
"...E acaso o criminoso não poderá ascender à maioridade que não tem? Suprimi-lo é suprimir a possibilidade de que o absoluto conscientemente se instale nele. Suprimi-lo é suprimir o Universo que aí pode instaurar-se, porque se o nosso "eu" fecha um cerco a tudo o que existe, a nossa morte é efectivamente, depois de mortos, a morte do universo". Vergílio Ferreira
Este é, pois, um dos valores fundamentais a defender em qualquer situação, pelo que significa de avanço civilizacional e como expressão de humanismo e de portugalidade.
Associando-se à declaração da Presidência da União Europeia, o governo português manifestou a sua "total oposição à pena de morte" contra Saddam Hussein, por considerar que a medida é "contrária à dignidade humana”.
Horas antes, o seu porta-voz, Tony Snow, declarou que o governo norte-americano elogiava o sistema judicial iraquiano e negou as denúncias de que a sentença foi orquestrada em Washington.
A Amnistia Internacional também esteve no Iraque, sempre na linha da frente da defesa dos Direitos Humanos contra a brutalidade da ditadura protagonizada por Saddam. Conhece bem os casos de horror e, tal como os que sofreram a noite negra desse regime horrendo, tem um milhão de razões para exigir Justiça.
No entanto, em coerência com os valores que defende, o Director do Programa Regional para o Médio Oriente e Norte de África da Amnistia Internacional, Malcolm Smart, considera que “responsabilizar Saddam Hussein pelas violações de direitos humanos generalizadas cometidas pelo seu regime é absolutamente correcto, mas para fazer justiça é necessário que o processo seja imparcial, e infelizmente, este não foi o caso."
Segundo Smart, o julgamento de Saddam Hussein e das sete pessoas que com ele foram acusadas perante o Supremo Tribunal Criminal do Iraque, além de outras falhas graves, terá sido minado por irregularidades e extremamente injusto, devido às interferências políticas que fragilizaram a independência do tribunal.
Independentemente de tudo isto, há uma sensação de que a hipocrisia continua a ser o elixir dos vencedores do momento. E é impossível não perguntar pelos poderes do mundo democrático, políticos e económicos, que se serviram num dado momento de Saddan, fingindo ao mesmo tempo que não conheciam as suas vítimas e a desumanidade da sua intolerância. Ou como podem eles manter-se indiferentes a outros ditadores igualmente facínoras, que contam no seu curriculum idênticas façanhas contra a Humanidade, apenas porque a Diplomacia dos interesses económicos e geopolíticos a isso obriga.
É impossível conter a náusea que se espalha na consciência ao confirmar, pela enésima vez, a hipocrisia que atrasa a História em direcção ao Mundo Novo.
Em relação ao destino a dar a Saddam Hussein, ele admitiria muitas soluções, excepto uma: está no quinto mandamento!
No último sábado do ano, antes do nascer do sol, o ditador Saddan Hussein foi executado por enforcamento.
Terá a ganho a Justiça, a Democracia e os Direitos Humanos? Julgo que não! “O julgamento deveria ter constituído um marco no estabelecimento de um estado de direito no Iraque após décadas de tirania de Saddam Hussein. Foi uma oportunidade falhada."
O enforcamento de Saddam às mãos da nova "justiça" iraquiana evidencia o que já há muito se temia: que, à semelhança das, afinal, inexistentes "armas de destruição maciça" do Iraque, também o Estado de direito inexiste, agora, nesse país. Com esta morte do antigo ditador, a tão propalada "superioridade moral do Ocidente" acabou por sofrer mais um abalo.