11 agosto 2011

ILEGALIDADE DO MUNICIPIO ATENTA CONTRA O PATRIMÓNIO


Edifício original - A TRANSPARÊNCIA



Depois da descaracterização - A OPACIDADE EM ESPELHO



Sobre a Transparência da Cultura
José Cadilhe, arquitecto
Poderá ainda passar despercebido para muitos, mas é seguramente uma alteração radical na forma como experienciamos agora uma parte da nossa cidade. Hoje existe uma profunda transformação na Biblioteca Municipal da Póvoa de Varzim à luz de uma tentativa de melhorar eventuais problemas térmicos e energéticos. Teremos sempre que aplaudir e incentivar todas as formas de requalificar, reabilitar ou apenas reconfigurar construções em direcção a uma maior sustentabilidade e eficiência energética, mas o que também deveremos fazer, é uma análise crítica e fundamentada de como poderemos desenhá-las respeitando o património e garantindo a qualidade arquitectónica.
É sabido que a Biblioteca, ao abrigo do Plano de Urbanização da Póvoa de Varzim foi, e bem, considerada uma edificação com interesse patrimonial. Na verdade, é seguramente um dos mais emblemáticos edifícios dos finais do século XX, uma referência da arquitectura moderna e de ambições para novos paradigmas de fazer cidade e de facto, a atribuição do primeiro lugar no concurso nacional "O Tempo da Arquitectura" (1989) assim o confirma.
Curiosamente, no Art.º 10 - Edificações com Interesse Patrimonial, deste mesmo regulamento, podemos ler que existem alguns condicionalismos para garantir e defender este valor patrimonial, nomeadamente a "preservação integral da fachada". Pois aquilo a que assistimos é exactamente o contrário. De facto, subverteu-se completamente o princípio de transparência entre a cultura e a cidade, a relação activa e cúmplice do interior com o exterior, a abertura e da disponibilidade democrática para todos os cidadãos. Acrescento ainda que a fachada de Oliveira Ferreira está agora excessivamente presente, reflectida, e remetida à sua própria contemplação. Deixou de haver a relação e o afecto entre o novo e o passado e a ruína do Orfeão Poveiro passou a ser um adereço desconexo.
Todos sabemos, e o arquitecto Silva Garcia foi sempre o primeiro a reconhecê-lo, que existia a necessidade de rever soluções construtivas para garantir maior eficiência térmica e energética. Sei também que o próprio autor se disponibilizou totalmente a colaborar activamente na construção de alternativas mais sustentáveis e que inclusive estudou uma série de possibilidades e sistemas que enfatizariam a ideia original do edifício. Por outro lado, e porque teremos que ser sensíveis e razoáveis numa altura de grande contenção, sabemos que Silva Garcia defende com destaque esta nossa obrigação de procurar soluções criativas e económicas, de fácil manutenção e aplicação.
Contudo, aquilo que foi feito foi a negação da originalidade a que o regulamento obriga, foi a aplicação de uma solução que não é sustentável e que em nada favorece o edifício. Todos desconhecemos os estudos e critérios que a fundamentam. Confesso que tenho muitas dúvidas que o corpulento arvoredo da Rua Padre Afonso Soares não seja suficiente para defender o silêncio da biblioteca da insolação. As inúmeras clarabóias, talvez uma das principais causas de algum desconforto, parecem ter ficado esquecidas. O que nos foi dado foi uma película que agora transforma este edifício num volume opaco e fechado, autista e indiferente. O que passamos a saber é que o pelouro do Urbanismo colapsou nos regulamentos que ele próprio definiu, que a gestão do património é afinal uma escolha caprichosa e superficial. Para além disto tudo, confesso que é com grande tristeza que vejo que de forma despercebida continuaremos a ignorar um invulgar desrespeito aos poveiros, à cidade e ao seu património...

Texto publicado na edição de 11 de Agosto de 2011 do jornal "O Comércio da Póvoa de Varzim"

4 Comments:

Blogger Manuel CD Figueiredo said...

Em jeito de introdução ao comentário que aqui deixo, informo que em Novembro de 1974 escrevi um artigo (publicado em "O Comércio da Póvoa", nº47, de 7 de Dezembro de 1974)sobre o projecto inacabado da autoria do Arquitecto Francisco Oliveira Ferreira, e a minha proposta para a sua reconstrução: seria o Palácio da Cultura.
Anos mais tarde, e no mesmo jornal (nº13, de 2 de Abril de 1987), insisti na necessidade daquela reconstrução, a que então passei a chamar Casa da Cultura. Nessa data - 1987 - desconhecia que estava em curso o projecto de arquitectura do actual edifício da Biblioteca (1985), da autoria do Arquitecto JJ Silva Garcia.
Serve isto para dizer que não são de agora os meus sentimentos por aquele edifício emblemático, que considero o expoente máximo da Cultura poveira, por tudo aquilo que é e que representa.
Premiado, a nível nacional, o Edifício da Biblioteca é uma referência alargada, mesmo além fronteiras, que honra o seu autor e a Póvoa de Varzim. Honra os poveiros. Por isso, foi louvável a medida tomada pela Autarquia poveira em considerar o Edifício da Biblioteca como sendo uma Edificação com Interesse Patrimonial, o que, para além da importância que lhe é atribuída, obriga ao cumprimento de determinadas imposições legais, de entre as quais sobressai a proibição de alterar a sua fachada.
A Autarquia, irresponsavelmente, alterou a fachada!
Alegando problemas térmicos e energéticos, que poderão existir (os quais seriam corrigidos doutra forma), e sem consultar o arquitecto autor do projecto, descaracterizou o edifício, violando as regras patrimoniais aprovadas e desrespeitou a nossa memória colectiva.
A Autarquia feriu a Cultura!

13 agosto, 2011 23:13  
Blogger George da Guia said...

Caro JJ, a falta de sensibilidade assusta aos desavisados...Espero qe consiga recuperar os valores arquitetonicos e historicos do edificio. Aa materialidade da história é a possibilidade de perpetuação da memória...

17 agosto, 2011 05:22  
Anonymous Anónimo said...

Fosse para lá tentar passar uma tarde a ler ou estudar e percebia que o espelhado afinal nem fica assim tão mau...

25 agosto, 2011 19:26  
Anonymous Anónimo said...

Estou eu aqui no Brasil indignado com esta medida tomada pelo poder público aí em Portugal. Aquele que antes de qualquer outro deve submeter-se, e mais até, zelar pelo cumprimento das leis sancionadas e vigentes, é este mesmo o primeiro a descumprí-la.

Ora, se a lei vigente determina que não se pode fazer alterações na fachada da edificação, ao poder público cabe, repito, mais que a qualquer outro, zelar para as características daquele prédio sejam mantidas. Caracterizou-se o descumprimento da Lei e o abuso da autoridade.

Cá no Brasil temos instrumentos como as Ações Públicas para provocar o Poder Judiciário a manifestar-se e sentenciar a bem da Lei obrigando o seu cumprimento. Também temos instituídos os Ministérios Públicos para provocar a Justiça em casos como este. Sabendo que os princípios que dão orígem a estes instrumentos são universais, será interessante buscar os meios legais válidos em Portugal para obrigar o cumprimento da lei. Lei é para ser cumprida! Certa vez ouvi de um amigo jurista a frase de quem desconheço a autoria: "Se a Lei é ruim, mude-se a lei" o que é muito distante do "descumpra-se".

Afora o aspecto legal, jurídico, do fato, também há o desrespeito à obra, ao patrimônio, aos cidadãos, inclusive os usuários do prédio, e ao autor do projeto. É como se numa tarde algum tresloucado irresponsável rasgasse a Constituição do País, virasse um Dalí de cabeça para baixo, ou pintasse Fátima de vermelho, ou espelhasse as janelas da Fortaleza de São Jorge, e também deixasse o lixo de sua casa na porta do vizinho...

Se há a real necessidade de uma interveção, se há que fazê-la, que se faça sob o amparo da Lei e com respeito aos munícipes e ao autor. Ao que parece a interveção feita não respeitou a Lei, os cidadãos e, muito menos, o autor, que, em sua recente vinda ao Brasil, em conversa, este já manfestava sua preocupação sobre o assunto. Aliás, ele próprio, como autor do projeto, já se havia disposto a participar da busca de solução voluntariamente, como me disse àquela ocasião.

É preciso um outro rumo para essa história.

21 setembro, 2011 17:13  

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