25 fevereiro 2007

OOPS!!!


O camarada Jose Lello, secreário nacional do PS para as Relações Internacionais, foi eleito por unanimidade, em Bruxelas, presidente da Assembleia Parlamentar da NATO, organização onde já assumia uma das vice-presidências.
É juntar um mais um: percebe-se agora porque vilipendiou a camarada Ana Gomes quando esta clamava esclarecimento sobre os voos ilegais da CIA.
É neste momentos que fica ainda mais claro que o PS e todos nós ganhamos com homens e mulheres de fibra, com convicções e com coragem, indisponíveis para o conformismo e para a subserviência. Que não nos serve a companhia dos que estão sempre em cima do muro!
Vêm-nos depois com a justificação do orgulho nacional. Transborda até, porque nomeações como esta não me entusiasmam: confirmam apenas a hipocrisia e a subversão das coisas. E se isso acontece na família politíca a que aderimos, tanto pior!

17 fevereiro 2007

UM NOVO PARADIGMA DE MOBILIDADE



Num documento da OCDE, produzido após um encontro internacional de reflexão sobre o comportamento nas deslocações individuais, concluiu-se que “Todas as partes de uma região urbana devem ser desenvolvidas e organizadas, de tal modo que as vantagens de não possuir um automóvel sejam pelo menos iguais às vantagens de o possuir “.

Isto significa que, sendo um instrumento útil que não deve ser banido do nosso quotidiano, também não faz sentido submeter a cidade e o modelo urbanístico ao automóvel privado.

Hoje, na Póvoa, mais de 70% das deslocações fazem-se em automóvel. O que devia ser factor de liberdade individual, de versatilidade, de agilidade e, sobretudo de rapidez e de ganho de tempo, transformou-se no principal factor de congestionamento, devido ao seu uso excessivo.
O problema não se resolve com mais ruas e, muito menos com mais estacionamento nas zonas centrais. Resolve-se com alternativas de mobilidade.

O nosso problema não é o estacionamento, mas o congestionamento urbano resultante do uso excessivo do automóvel particular e a falta de mobilidade!
Não reivindiquemos mais e mais estacionamento, mas sim, transportes públicos, diversidade modal e intermodalidade.

É urgente um novo paradigma de mobilidade!

13 fevereiro 2007

HOJE APETECE-ME O POEMA

foto de António Manuel Pinto da Silva


O poema

O poema me levará no tempo
Quando eu já não for eu
E passarei sozinha
Entre as mãos de quem lê

O poema alguém o dirá
Às searas

Sua passagem se confundirá
Como rumor do mar com o passar do vento

O poema habitará
O espaço mais concreto e mais atento

No ar claro nas tardes transparentes
Suas sílabas redondas

(Ó antigas ó longas
Eternas tardes lisas)

Mesmo que eu morra o poema encontrará
Uma praia onde quebrar as suas ondas

E entre quatro paredes densas
De funda e devorada solidão
Alguém seu próprio ser confundirá
Com o poema no tempo


Sophia de Mello Breyner
Livro Sexto (1962)

08 fevereiro 2007

SIM, PORQUE SIM À VIDA PLENA

1.
O assunto em debate é complexo e sensível e, por muito que se tente não o fazer, é inevitável pensar na letra maiúscula da Vida. A Ciência não tem respostas conclusivas para muitas perguntas pertinentes, como ouvi de um cientista que lida com o fenómeno no plano da sua complexidade fisiológica. Mas, tampouco a Religião tem respostas inquestionáveis. E, como refere o historiador Pacheco Pereira, só para se perceber que não é simples definir a Vida há que lembrar que, por exemplo, para alguns budistas e hindus, o mesmo "sopro divino" não se limita aos humanos, mas também está presente nos animais, que nós matamos sem respeito pela "vida" e eles não.
Chegados aqui, reconheço com humildade que não tenho certezas absolutas e que me resta colocar as coisas no plano que me parece ser o do bom senso. Isso passa por tentar compreender o lado dramático de um problema que não se pode escamotear: existe um número significativo de pessoas que recorrem à interrupção voluntária da gravidez pelos motivos mais diversos e às vezes insondáveis e que o fazem num estado de intensa fragilidade e falta de condições mínimas de segurança clínica, de que decorre um grave problema de saúde pública.
Mas, o bom senso também impõe que se evite uma das mais pérfidas distorções da realidade quando se pretende dividir as pessoas em dois grupos: o que é pela vida e aquele que está disposto a matar, alinhando o primeiro pelo lado do NÃO e tentando confundir o outro ao lado do SIM, no debate motivado pelo referendo à alteração da actual Lei sobre a interrupção voluntária da gravidez.
Eu sou pela Vida, pela Vida na sua plenitude. Mas, não tenho a arrogância de considerar que há uma única definição para a Vida, nem a hipocrisia de entender que ela tem sempre o mesmo valor. Que vale tanto um espermatozóide – que é vida humana -, como um feto que inicia um novo ciclo sem se saber se vai vingar, ou como uma criança que já tem consciência de si, já descobre o seu corpo e a relação com o que o rodeia e consegue construir escolhas, ou como o da maior complexidade que um adulto atinge na sua circunstância.
Na verdade, não valeria a pena trazer para a discussão o que a pergunta do Referendo não discute! Mas, se preferem discutir a Vida, então façamo-lo de forma larga, em todas as suas vertentes. Não só na concepção e formação intra-uterina, mas no quotidiano, no campo social, económico e cultural, e nas diversas idades, na infância e na juventude, na idade adulta e na velhice. A Vida não se defende a traço interrompido, mas através de uma atitude global inconformada com todas as tiranias e os abusos da dignidade humana!

2.
O projecto de despenalização e os seus defensores não "matam" nada nem ninguém, nem cometem qualquer "crime". Antes e apenas pretendem criar um espaço para a liberdade de decisão das mulheres, em nome do importante valor de uma maternidade consciente e responsável.
Muitas pessoas invocam o "direito à vida" do embrião ou do feto para combater a despenalização. Ao mesmo tempo, para elas vale mais impor gravidezes indesejadas (e futuros filhos não queridos) do que a defesa da liberdade, da autonomia e da felicidade das pessoas.
Se algo deve ser desejado, devem ser os filhos, que não se impõem. Muito menos usando o poder repressivo do Estado e a ameaça da prisão!
Ao defender o SIM no referendo não estou a defender o aborto como solução. Estou, pelo contrário a ter uma atitude de compaixão, de compreensão e tolerância por quem, em determinadas circunstâncias, não consegue assumir a maternidade com uma inequívoca vontade interior, e opta por interromper o processo. E, ao defender o SIM, também não estou a impor a ninguém que escolha interromper a gravidez. Pretendo apenas assegurar que, quando alguém não conseguir superar os constrangimentos que o bloqueiam, apesar de todo o apoio, de todo o acompanhamento que se lhe disponibilize, o possa fazer em condições de segurança e dignidade. Ao procurar o “estabelecimento legalmente reconhecido” – o Hospital – na hora do desespero e da falta de bússola, estaremos a potenciar alternativas que, quando abandona da a si própria e à sua solidão ou a pressões egoístas e inaceitáveis de outrem, a mulher não consegue superar. Longe dos becos da clandestinidade, neste Hospital mais humanista, passa a ser possível um caldo de oportunidades e de soluções tantas vezes impossíveis de descortinar na escuridão da solidão. Talvez aí, com mais esclarecida responsabilidade e liberdade, mesmo assim algumas mulheres continuem a decidir pela interrupção da gravidez. Mas, seguramente, muitas mulheres e jovens raparigas encontrarão uma luz ao fundo do túnel, a mão amiga que precisam, afinal, para continuar a caminhada para uma maternidade feliz.

3.
É para mim óbvio que, quem considerar o aborto um "pecado mortal" ou a violação intolerável de uma vida, não deve praticá-lo. É admissível até que invista toda a sua boa vontade tentando dissuadir os outros de o praticarem. Todavia, entendo que não é legítimo instrumentalizar o Estado e o direito penal para se impor aos outros as próprias convicções e condená-los à prisão, caso as não sigam. E se a descriminalização e a despenalização do aborto não obrigam ninguém a actuar contra as suas convicções, mas a punição penal, sim.
Não pretendo impor a minha moral a ninguém. Mas, se defendesse o NÃO neste referendo – mesmo movido pelos motivos mais nobres da defesa intransigente da vida, como se vivêssemos num mundo ideal e fosse legítimo exigir heroicidade a todos os seres humanos – estaria a assumir uma contradição e uma fragilidade.
A contradição estaria no facto de que a actual lei já admite a eliminação da vida intra-uterina, e de o aceitar tacitamente, como nos casos de violação da mulher. Ora, se a Vida, pelo seu valor primeiro e absoluto, não pode ser interrompida enquanto a pessoa é ainda uma longínqua hipótese, como se pode aceitar que o seja nesta hipótese? Pode, e ainda bem, direi. Seria de uma grande desumanidade impor a alguém um filho nascido de tão pérfida agressão. Seria injusto para ela e para o ser humano que dela nascesse!
A fragilidade resultaria do admitir implicitamente a falta de capacidade para persuadir os outros da bondade dos meus valores morais, ao recorrer ao poder repressivo do Estado para, através de um diploma legal que não deveria regular a moral, lhes impor uma conduta, sob pena de castigo de prisão.

4.
A Lei hoje em vigor não acabou com o flagelo do aborto: multiplicou os eventos clandestinos. Ao contrário, tenho a convicção de que a despenalização e a "desclandestinização" do aborto favorecem a construção de decisões mais ponderadas e reflectidas, mediante aconselhamento médico e psicológico. Como defende o constitucionalista Vital Moreira, “a despenalização do aborto nos termos propostos não viola o direito à vida garantido na Constituição, como voltou a decidir o Tribunal Constitucional, na fiscalização preventiva do referendo. No conflito entre a protecção da vida intra-uterina e a liberdade da mulher, aquela nem sempre deve prevalecer. O feto (ainda) não é uma pessoa, muito menos às dez semanas, e só as pessoas são titulares de direitos fundamentais e, embora a vida intra-uterina mereça protecção, inclusive penal, ela pode ter de ceder perante outros valores constitucionais, nomeadamente a liberdade, a autodeterminação, o bem-estar e o desenvolvimento da personalidade da mulher. Mas a punição do aborto continua a ser a regra e a despenalização, a excepção.”

5.
Não tenho certezas. Mas, a consciência da realidade impele-me convictamente a defender a descriminalização do aborto, nas condições e limites propostos no referendo, ou seja, desde que realizado por decisão da mulher, em estabelecimento de saúde, nas primeiras dez semanas de gravidez.
Não se trata de liberalizar o aborto. Aborto liberalizado é o que resulta hoje da sua clandestinidade. Trata-se de entender que é o único meio de pôr fim à chaga humana e social do aborto clandestino. E, se a ameaça da repressão penal não se tem mostrado eficaz, a legalização do aborto nas circunstâncias da nova lei não fará, por certo, aumentar substancialmente a sua frequência. A única coisa que se altera é que o aborto passa a ser realizado de forma segura e digna sem as sequelas dos abortos clandestinos mal sucedidos. Neste sentido, a legalização do aborto é uma questão de saúde pública. Aqui chegados, é inevitável denunciar a obscenidade que existe na utilização do argumento dos custos financeiros para o Serviço Nacional de Saúde. Para já não falar de todas as doenças que o SNS suporta por más práticas de todos nós, sem que a Triagem de Manchester se transforme numa “triagem de Winchester”, o referendo não inclui essa questão, deixando para a lei decidir sobre o financiamento dos abortos "legais". De qualquer maneira, mesmo que uma parte deles venha a ser praticada no SNS, o seu custo não deve ser superior ao que actualmente hoje se gasta com a perseguição penal dos abortos e com o tratamento das sequelas dos abortos mal sucedidos.

05 fevereiro 2007

UMA BOA NOTÍCIA



O PRIX DE LAUSANNE é um dos mais importantes eventos internacionais onde o Ballet e a Dança Contemporânea são o tema.
Por aí passaram nos últimos trinta anos os nomes mais proeminentes da dança que hoje atraem um número crescente de pessoas às salas de espectáculo...
Na edição 2007, entre 29 de Janeiro e 4 de Fevereiro, entre 61 jovens de 23 países, esteve o Telmo que conheci na Escola de Dança do Conservatório Nacional, em Lisboa, onde a Sara aperfeiçoa a vocação de bailarina.
Chegado de um país que se tem esquecido do ballet, o talento de Telmo mereceu um honroso 5.º lugar, tendo-lhe sido atribuída uma bolsa de estudo para uma escola no estrangeiro pela Adveq Management SA.

O Telmo está de parabéns, como estão de parabéns os professores que o descobriram e com ele trabalham!

Vivendo num país que se tem esquecido do ballet, será que a aventura de Telmo vai acordar as mentes demasiado ocupadas com coisas menores?


02 fevereiro 2007

CLARIVIDÊNCIA


Ler os outros, para sair da superficialidade e vestir a humildade da dúvida, recusando os dogmas dos extremismos fanáticos. O que é a Vida? Será que há ou pode existir unanimismo em volta deste complexo fenómeno?
José Pacheco Pereira questiona e não dá respostas pelos outros nem tem a arrogância de impor aos outros a sua resposta - provavelmente sempre em construção.



A vida e a "vida"
José Pacheco Pereira


Há um aspecto do debate sobre o aborto que está muito presente nas tomadas de posição do "sim" e, particularmente, no "não": a impregnação do debate por palavras com um sentido cultural, político e religioso determinado, apresentadas como se fossem universalmente aceites e semanticamente unívocas. Como se o significado que lhes damos fosse universal e estivéssemos todos de acordo. É o caso da "liberdade" no argumentário do "sim" e da "vida" no do "não". Ambas as palavras são utilizadas correntemente como se fossem neutras, como se uns e outros tivessem que as aceitar pelo seu valor facial, como se não quisessem dizer mais do que o dizem na linguagem corrente.Na verdade nenhum dos termos é "inocente", nenhum aponta para coisas que todos reconheçam, mas, pelo contrário, remetem para uma longa história cultural, política, filosófica e religiosa, que numas vezes é comum, noutras se distingue e se diferencia. Como num debate político ganha quem consegue impor um léxico que controla, na imposição e na aceitação de um ou de outro significado da palavra enganadoramente comum está também presente uma questão de poder. É muito nítido este problema quando se fala de "vida", quando numa manifestação se grita "viva a vida", o que por si só deveria levar de imediato a pensar que a "vida" que se vitoria é uma determinada interpretação da vida e não a vida tout court.No vocabulário do "sim", a palavra "liberdade" é normalmente caracterizada, ou de "liberdade de escolha", ou de "liberdade do corpo", ou de "liberdade de consciência", remetendo para uma tradição derivada de uma ética laica, civil, jurídica e societal, que é a típica das sociedades ocidentais europeias e americanas dos últimos duzentos anos. Remete para a "felicidade terrestre" de que falava Saint-Just, e para toda uma história do pensamento que nos acompanha desde a Grécia clássica e que se tornou a ética civil dominante, como resultado de um complexo processo que nos deu os direitos humanos, a condenação da pena de morte e da tortura, o casamento civil e o divórcio, o "registo civil", a democracia política, a separação do Estado e da Igreja, a tolerância entre posições políticas, credos e culturas. Por muito que isso custe a muitos católicos, a Igreja não teve um papel central em nenhum destes adquiridos, que hoje aceita como natural ou mesmo civilizacional. Bem pelo contrário, combateu-os com veemência e foi só nas últimas décadas que abandonou a posição "antimoderna" de muitos dos seus papas entre meados do século XIX e XX. Foi em bom rigor só depois da Segunda Guerra Mundial, devido aos esforços de muitos teólogos e hierarcas da Igreja, incluindo o presente Papa, que se aceitou a modernidade como não sendo hostil ao munus religioso, que se aceitou a modernidade como benéfica, mesmo que problemática. Este adquirido civilizacional de uma sociedade civil, de que fazem parte as Igrejas, mas que não é dominado pelas Igrejas, resultou de um processo em que participaram correntes contraditórias, jacobinas e liberais, nuns casos resultado da fundamentação da liberdade política no direito à dissidência religiosa (EUA), noutros das ideias da Revolução Francesa. Em ambos os casos, mesmo com tradições muito distintas, o resultado foi o mesmo: a predominância do "terrestre" na "felicidade" e na criação de sociedades que não têm nenhuma teleologia comummente aceite.Dentro dessas sociedades as religiões e as Igrejas tem um papel decisivo, em particular as grandes Igrejas matriciais do Ocidente, a católica apostólica romana, a ortodoxa grega, a reformada, a anglicana, mas esse papel varia não só em função do peso da instituição na "Igreja" como também pela laicização das sociedades civis, que no fundo aplicou a afirmação cristã de que se deve dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus. Dentro desse princípio, que molda o mundo em que vivemos, deve a vida (a vida e não a "vida") pertencer a César ou a Deus? Esta é a questão que está em causa neste referendo e está longe de ser simples a não ser para aqueles que consideram que existe na vida uma presença divina, uma "alma", um "sopro divino", que permanece intangível desde a fecundação, porque é "em potência" um ser humano. Muitos católicos envolvidos neste debate e a própria Igreja têm esta posição hoje. Mas só para se perceber que não é simples esta definição de "vida" há que lembrar que, por exemplo para alguns budistas e hindus, o mesmo "sopro divino" não se limita aos humanos, mas também está presente nos animais, que nós matamos sem respeito pela "vida" e eles não.Mesmo para a Igreja esta interpretação da vida é relativamente recente. O Catecismo da Igreja Católica admitiu na sua primeira edição a pena de morte, e mesmo na aprovação das excepções previstas para o aborto na actual lei, aceites por muitos católicos, já há uma cedência à intangibilidade da "vida" como princípio. Na verdade, esta posição sobre a "vida" tem muitos pressupostos que são intrinsecamente religiosos e de fé, e que ou são aceites ou não, mas não podem ser considerados auto-evidentes para quem não tem fé. Implica, por exemplo, a ideia de que existe uma "alma" - chamemos-lhe o que quisermos vai sempre dar aí -, uma presença espiritual que está para além do corpo, um Logos de natureza radicalmente alheia à mecânica do corpo, que não se reduz a ele, que está para além dele, que é imortal. A "vida" a que se bate palmas nas manifestações é mais do que a do corpo, é a da criação divina, e compreende-se que, sendo entendida como pertencendo a Deus, não se queira dá-la a César, ao Estado moderno. E se eu não acreditar que há uma "alma" e me basta o código genético, e se eu for materialista e entender o corpo como uma máquina aperfeiçoada apenas pela evolução natural e resumir o Logos a um produto dessa mesma máquina, e se eu entender que verdadeiramente tudo tem a ver com o "egoísmo" dos genes e for sociobiológico, será que tenho que aceitar esta visão da "vida" mesmo sem fé? E se eu considerar que não há "vida" passível de ser descrita pela ciência a não ser como excepção temporária e precária à segunda lei da termodinâmica e entender que para perceber essa violação da entropia que é o metabolismo, a que chamamos vida, não preciso de qualquer princípio vital? E se eu no meu laboratório não encontrar nem Deus nem a "vida", mesmo desejando encontrá-los, será que me coloco fora dos valores civilizacionais? E se eu considerar que uma coisa é esta "vida" divina e outra é a vida, mais modesta, menos programática, mais humilde, menos pretensiosa, mais "terrestre", que inclui não apenas a criação mas o desejo da criação, que implica mais do que o código genético, ou o acto da fecundação, mas a vontade de a criar, exigindo um "programa" que inclua a vontade dos seus progenitores, coloco-me à margem dos nossos valores civilizacionais? A "vida" a que se bate palmas é apenas uma das muitas interpretações da vida como valor, que assenta numa fé de carácter religioso e numa interpretação que depois extravasa para a aceitação selectiva de determinadas doutrinas éticas e "científicas" que estão longe de ser as únicas e de serem incontroversas.Assim não nos entendemos porque me pedem que acredite, e acreditar não está ao alcance de todos. O que é que sobra? Um terreno comum entre a sociedade civil laica e a tradição cristã: a consideração da pessoa humana (também um conceito construído), um personalismo mínimo, que abrange realidades metapolíticas e metassociais mas não é metafísico, esse sim, produto comum da nossa história civilizacional que une laicos e crentes. É isto uma defesa do relativismo? Bem pelo contrário: nenhum relativismo vale quando se trata de pôr em causa a pessoa humana, mas a pessoa humana, cuja noção de "dignidade" une muito dos que defendem o "sim" e o "não", é uma coisa bem diferente da "vida" a que se bate palmas nas manifestações. Ah! e admite o aborto, sem lhe retirar todos os dilemas morais e religiosos, tal como está legislado na maioria dos países europeus e nos EUA, que foram feitos pela nossa civilização. Somos nós a excepção, não eles.É, por isso, necessária muita prudência ao usar as palavras como valores civilizacionais comuns, quando o que é civilizacional é a convivência de diferentes entendimentos das mesmas palavras e não tanto uma determinada interpretação, muito menos imposta por lei, muito menos pretendendo o monopólio da moral e da civilização.

in Público, 1 de Fevereiro de 2007