DEBAIXO DO TAPETE

Numa destas tardes de sábado, um desses actores lá estava. Estranhamente agitado mexia-se na cadeira. Preso pelo peso do olhar que lançara quase todas as ancoras ao chão, soltou palavras com risinhos à mistura, como faíscas despropositadas que deixavam a suspeita de virem “Debaixo do Tapete”.
“Debaixo do Tapete”, o mais recente título do doutor Mateus, serviu para o actor concluir - pelos vistos após aturada leitura -, que a trama se passaria na mesma terra onde, naquela tarde de sábado se falava do livro... por causa do casino, por causa da praia…, por causa da falta de causas, apeteceu-me rematar.
E ria-se. Ria-se, sempre que insistia na tese de que, segundo a sua pessoalíssima opinião, a trama se passaria na mesma terra onde vivia o escritor, onde ele também parecia viver e onde muita coisa, afinal, se escapa para “Debaixo do Tapete”.
Ria-se, e de cada vez que se ria, eu não percebia qualquer justificação para o misterioso riso!
Em casa, por fim, depois de autografado o livro, decidi penetrar páginas a dentro. Inopinadamente, ao virar da esquina, quando me aproximava do final do segundo capítulo, deparei-me com este saboroso trecho:
“Que se lixe a lei! – pensou ele um dia. Não foi tarde, nem cedo. Fez uns cálculos. Contando com o tempo do serviço militar, ficou em casa cinco dias seguidos, sem dar cavaco a ninguém. Quando se apresentou ao serviço, suspenderam-no e instauraram-lhe um procedimento disciplinar. Quando recebeu a acusação não fez caso. Passados dois meses, recebeu a decisão que esperava: reforma compulsiva. Tinha conseguido pela infracção ao estatuto disciplinar dos funcionários públicos o que pela via legal não lhe seria concedido, por lhe faltar o tempo de serviço necessário à aposentação.” (in "Debaixo do Tapete", Carlos Mateus)
Interessante semelhança com outra história contada por Joaquim Fidalgo na edição de 26 de Janeiro de 2006, do jornal Público.
“Ele era, dizem, um funcionário exemplar da Câmara Municipal da Póvoa de Varzim. Em cerca de dez anos de carreira, nunca faltara ao trabalho. E de repente, sem ninguém contar, dá uma falta injustificada. E logo a seguir outra, e outra... Cinco. Cinco faltas injustificadas. Caso grave! Deu processo disciplinar, ao fim de apenas duas semanas já havia relatório final. Foi o assunto à reunião de câmara e o funcionário recebeu a adequada punição (a segunda mais grave da administração pública, dizia o jornal): compulsivamente mandado para a reforma. E lá foi ele para casa, com uma reformazita de pouco mais de três mil euros mensais - 627 contos, para sermos precisos. Grande castigo, sim senhores!... Prematuramente aposentado, mas ainda cheio de força para trabalhar, bastaram mais duas semanas a este funcionário exemplar para ser convidado para nova função: administrador de uma empresa municipal. De que câmara? Da da Póvoa de Varzim, obviamente... E lá ficou o nosso homem a acumular a reforma antecipada de seiscentos e tal contos mensais com outros tantos centos, não sei quantos, do novo cargo numa administração. Bem vistas as coisas, não lhe correra mal a vida...(…)”
Percebi, finalmente, que a risadinha nervosa não era mais do que um estratagema para sacudir a água do capote. Na verdade, ele tinha boas razões para propor como tese que a trama que o escritor atirara para “Debaixo do Tapete” tinha como espaço de acção a mesma terra onde ele próprio ajudara a disfarçar a historieta parecida de que fala Fidalgo.
A risadinha, repetida e sublinhada, servia para fingir que não era nada com ele. E servia, também, para fazer chacota de todos nós. É que, enquanto o Inquiridor (que o Tribunal viria depois a condenar por crime de abuso de poder…) conduzia a reunião que enegreceu a Câmara, o outro e ele estavam na América Latina. Não participaram da decisão formal, é verdade. Mas, só por hipocrisia e cobardia política tentam desresponsabilizar-se. Que se saiba, não ficaram por lá. Regressaram e nada fizeram para remendar a trapalhada. Aceitaram tudo com normalidade. Nada fizeram para corrigir o truque que deu ao “funcionário exemplar” a oportunidade de ganhar ilegitimamente, em cada mês, mais uns salários mínimos de reforma. Pior: duas semanas depois, sancionaram a sua nomeação para a presidência de uma empresa municipal!
Estas e outras vão sendo atiradas para “Debaixo do Tapete” diante de um confrangedor encolher de ombros colectivo!
Mas, nem uma coisa, nem outra me dão vontade de rir…