ÁRVORES COM HOMENS
Descíamos para o Sul, enquanto acompanhávamos pela Antena Um os discursos na Assembleia da República.
Cavaco Silva esteve invariavelmente cinzento e foi descrito pela jornalista com lapela sem cravo vermelho.
Helena Pinto foi pertinente, objectiva e indispensável num discurso sobre o que é preciso na vida dos portugueses.
Num outro registo, Paulo Rangel denunciou a alegada tentativa de concentração do poder policial na figura do Primeiro-Ministro, levado a ser uma espécie de Intendente. A ser verdade, o facto exige meditação e acção.
Maria de Belém, numa substantiva e culta intervenção, fazendo a apologia da visão kantiana de um mundo esférico onde somos todos próximos e vizinhos uns dos outros, desafiou-nos para um futuro humanista, de respeito pelas pessoas e pela Natureza. Intencionalmente ou não, as suas palavras estiveram cheias de mensagens que se podem enfiar como carapuças pertinentes na cabeça de um Governo que, reclamando-se de esquerda, tem tido por vezes uma prática minimalista do Socialismo democrático, deixando-nos muitas perplexidades!
Trinta e três anos depois, também estivemos na Avenida, envolvidos por milhares de pessoas e de cravos vermelhos que entoavam a mesma palavra de ordem, saudando o 25 de Abril!
No Rossio, as canções emergiam de vozes com brilho no olhar. Juntámo-nos às palavras intemporais de Gedeão, partilhando a sonoridade de Freire com os cantores de serviço que, no palco improvisado junto à estátua, insistiam que o “sonho comanda a vida”!
Mais adiante entrámos na marcha do Movimento Não apaguem a Memória que se desfilou até à António Maria Cardoso. A rua onde as únicas vítimas mortais da revolução dos cravos tombaram pelas balas cobardes de dois operacionais da Pide comandados pelo inspector Óscar Cardoso. A rua onde a tenebrosa casa da mão assassina de Salazar está agora a ser adaptada a um condomínio de luxo.
Este movimento de cidadãs e cidadãos livres, auto-organizado e auto-dirigido, plural e aberto, pretende contribuir para a salvaguarda e divulgação da memória da resistência à Ditadura e ao Fascismo. Entre outras iniciativas, o movimento está a lutar pela criação de um espaço museológico na antiga sede da polícia política, onde não se apague a memória do sofrimento, da resistência e da luta dos que, durante a Ditadura, aí foram torturados e assassinados, pelo único motivo de acreditarem que “sempre que um homem sonha, o mundo pula e avança”, pelo único motivo de percorrer o sonho de um Portugal democrático, solidário e desenvolvido,
Num tempo em que, ao saudosismo de uns quantos, tem correspondido uma intolerável acção de branqueamento das atrocidades da Ditadura que teve o rosto de Salazar, é cada vez mais pertinente não apagar a memória.
A grandeza dos valores democráticos está em não propor a vingança, em tratar com humanidade quem tratou os antifascistas com agressão, tortura e morte. Mesmo assim, continua a ser uma perplexidade para mim a atribuição ao Inspector Óscar Cardoso, em 1992, de uma pensão vitalícia por “serviços relevantes prestados à Pátria”.
Em 25 de Abril de 1974, o regime fascista caiu sem que ninguém, com excepção de meia dúzia de pides ressabiados, o viesse defender. Onde estavam os saudosistas que agora se erguem? Onde guardaram as suas convicções? Porque se esconderam e porque surgem agora tentando negar o que a História não conseguirá jamais esconder? Mas, que tempo é este, no limiar do século XXI, num Portugal incomparavelmente diferente do país cinzento da ditadura, e que, apesar disso, propícia o saudosismo e a apologia do Ditador que atrasou o nosso destino, corrompeu e contaminou a alma de muitos de nós que, ainda hoje, têm comportamentos e posturas com laivos contra a Liberdade e contra o Homem?