08 março 2007

MULHER E DEMOCRACIA


foto de Miguel Afonso


Que mensagem neste mais um Oito de Março?
Num mundo com tanto por fazer, ocorre-me distinguir duas mulheres de fibra: Ana Gomes e Clara Ferreira Alves e a ponte construida momentanemante entre ambas por um texto na Única. O texto fê-lo a segunda, por causa da primeira e por causa desta Democracia fingida em que nos movemos distraídos!
Aqui fica, em partilha, "A ESPINHA E O OSSO", a certeza de precisarmos todos de ser militantes de espinha dorsal ao alto, mulheres e homens.
A ESPINHA E O OSSO

Um dos postos onde a cobardia e a fraqueza são premiadas é a política. Não a política em todo o seu esplendor, e sim a pequena política, desenhada em rumores e bastidores e intrigas destinadas à salvaguarda da criadagem e à manutenção do poder. Foi há muito tempo que a política deixou de nos convencer da visão romântica e do desígnio social, e há muito tempo percebemos que não é a ideologia que molda a consciência e a consciência que vigia o exercício da autoridade. Percebemos também que pensar livremente dentro da política, que o mesmo é dizer dentro dos partidos, significa morte a breve prazo. Um exemplo do que acabo de dizer é a entrevista a Ana Gomes que este jornal publicou há uma semana e que é uma raridade. A entrevista recusa-se a alinhar pelo pensamento do dia e diz o que pensa, não o que pretende que os outros pensem dela mas, o que ela verdadeiramente pensa. Ficamos assim com um retrato de pessoas e situações cobertas pelo manto da hipocrisia. Como se sabe, a questão dos voos da CIA, que não era uma pequena questão e que o actual ministro dos Estrangeiros tentou desvalorizar e torpedear começando por atacar o carácter de Ana Gomes e não as suas conclusões fundamentadas, transformou Ana Gomes em “indesejável” dentro do Partido Socialista. A questão dos voos da CIA não é uma pequena questão porque ela estabelece a distância que todas as sociedades democráticas devem manter entre poder e abuso de poder. Que o autoproclamado Estado mais livre e democrático do mundo tenha decidido, por via de uma Administração criminosa, atentar contra os direitos humanos e raptar, deter e torturar suspeitos em diversos países, chegando ao cúmulo de os transportar para países onde seriam e foram torturados, atropelando o direito desses países e fazendo tábua rasa da independência política desses países e dos países que deram cobertura às operações de “extraordinary rendition”, uma prática ilegal e extrajudicial, não é uma questão de “fait-divers”. Em Itália e na Alemanha já vimos como o sistema judicial se interpôs, e em Portugal assistimos a uma operação de branqueamento e desinformação dignos de um serviço de espionagem, com um ministro e um Ministério a servirem de porta-vozes de interesses não democráticos e apelando à razão de Estado e a superiores razões de segurança. Neste aspecto, o trabalho de Ana Gomes, que alguma criadagem do PS tentou assassinar recorrendo ao método da apreciação psicológica desfavorável sempre muito usado com mulheres (ela seria tolinha), e sobretudo a coragem convicta de Ana Gomes (a que se juntou a investigação da revista “Visão” e do jornalista Rui Costa Pinto) desmascaram a perversão.
Sobre as responsabilidades do passado, saberemos um dia tudo, quando a Casa Branca mudar de dono. A história não termina aqui, e um dos que sabem que a história não termina aqui é, decerto, José Manuel Durão Barroso. O retrato que Ana Gomes traça desta personagem é interessante. Quando ele lhe diz que os partidos são meros instrumentos para chegar ao poder, e que ele se fartou de pensar na oposição até o poder lhe cair nas mãos, percebemos do que se fala. Nenhuma ideologia preside a esta inteligência que trepou da extrema-esquerda até ao abraço dos Açores a Blair, Bush e Aznar e ao patrocínio da guerra ilegal do Iraque. Foi este abraço que valeu a Barroso o cargo que hoje ocupa, o que só reforça a sua ideia de que a ideologia não interessa, o que interessa é o poder e o seu exercício. Ninguém lhe pode levar a mal por isto, esta ambição que Ana Gomes diz ser um problema de “falta de espinha dorsal”. Não creio que seja apenas isso. É um problema de osso, e, para agarrar o osso do poder, Barroso é um buldogue de formidável mandíbula. Justamente porque gente desta é perigosa e exercendo o poder em benefício próprio atropela os direitos alheios, precisamos dentro dos partidos de vozes livres e claras que não estejam dispostas a comprometer a ideia democrática em nome do interesse próprio. Em Portugal, os anos do fim do guterrismo e do barrosimo atiraram o país para a crise em que hoje está afogado. A recompensa desta incompetência foi, para ambos, o palco internacional. Com uma diferença: Guterres teve razões privadas poderosas para o seu fracasso, e teve uma atitude infinitamente mais honesta e desinteressada do que Barroso, tendo ganho o cargo que hoje desempenha por concurso e mérito. Nesses anos, inacreditáveis injustiças, ainda não redimidas, feriram de morte alguns políticos em Portugal. Foram anos perigosos, em que a complacência de Jorge Sampaio tolerou todos os atropelos e desmandos. Ana Gomes não se esquece desse tempo e quem tiver um pouco de consciência dificilmente se esquecerá. Continuamos a pagar, nós portugueses, o preço desses desmandos e filiações. E que acontecerá a Ana Gomes que no Parlamento Europeu fez o trabalho que lhe competia e resolveu não ser a voz do dono? Não será convidada nem reeleita, dizem-lhe os colegas de partido. O preço a pagar pela decência, a competência, a liberdade e a mania incurável da democracia é o despedimento sumário. Assistimos a isto e achamos isto natural?
Ainda falta fazer muita coisa em Portugal.


Clara Ferreira Alves
in ÚNICA – EXPRESSO 3 Março 2007

1 Comments:

Blogger José Leite said...

Caro Arquitecto:

Temas destes e posições destas são a antecâmara para o seu "despedimento"...

Admiro o seu carácter e o seu desassombro. Qualquer dia, um aparelhista qualquer, dir-lhe-á, mais ou menos isto: "o senhor é honesto demais para alinhar na engrenagem! Tome lá este par de patins... e vá dar uma volta!"

Custa dizer isto, mas é a verdade.

Ana Gomes é a voz da decência, do civismo, da respeitabilidade. Mas... e há sempre um "mas" nestas coisas... dir-lhe-ão alguns, que contra o "terror" há que usar "mais terror", para violadores de direitos humanos não há que respeitar direitos humanos, para esses, só a pena de Talião, "olho por olho, dente por dente!"

É um dilema que dilacera a própria democracia, é um conflito de consciências muito defícil de digerir...

Ana Gomes versus José Lello...

A voz da Lei, da consciência cívica, do decoro, versus "pragmatismo", "alinhamento estratégico", "realpolitik"...

Eu sei do que fala porque já fui vítima disso, no interior do PSD!

Por isso sei do que fala, do que sente, do que o enoja!

Mas pergunto a mim próprio: será que nós, os que sentimos a prepotência e a arrogância dos "bulldogs" da pequena política, iremos grangear a consciência dessa "vaga de fundo" que é a "alma popular"?

Até lá (até que o povo amadureça e nos compreenda...) temos que lutar contra os "bulldogs"...

09 março, 2007 14:13  

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