15 maio 2009

A CAIXA DE PANDORA

Plano de Pormenor da Zona Norte E54
J.J.Silva Garcia (in O Comércio da Póvoa, ed. 2009.05.07)


1. O fim último do ordenamento do território e do Urbanismo é promover a melhoria das condições de vida e de trabalho das populações, no respeito pelos valores culturais, ambientais e paisagísticos, a distribuição equilibrada das funções de habitação, trabalho, cultura e lazer. Isso passa por adequar os níveis de densificação urbana, impedindo a degradação da qualidade de vida e o desequilíbrio da organização económica e social, e por racionalizar o aproveitamento das áreas intersticiais, rentabilizando as infra-estruturas e evitando a extensão desnecessária das redes e dos perímetros urbanos.
Neste contexto, aos proprietários é legitimo retirar vantagem económica das parcelas de que são detentores apenas como consequência do correcto ordenamento do território e não como objectivo sobreponível ao interesse comum. Assim, ao planear a cidade não é legítimo manipular os índices urbanísticos em função dos interesses e das necessidades dos proprietários, mesmo que estes prossigam fins de interesse público! A acontecer tal deriva, numa atitude ideológica neo-liberal que trata a cidade como mercadoria, seremos, mais cedo ou mais tarde, vítimas da falta dos fundamentos do humanismo e da racionalidade indispensáveis à qualidade de vida urbana.
2. Para os terrenos do Varzim/CDP a Câmara propõe o que já experimentou no caso Quintas & Quintas. Sempre considerei inaceitável que, para resolver dificuldades financeiras de uma empresa privada e agora de um clube de futebol, o poder político criasse um bónus construtivo excepcional para onde a análise técnica havia recomendado capacidade construtiva mais contida. Que sentido faz avançar com propostas urbanísticas que não resultam de uma abordagem científica da cidade com vista à construção de um modelo urbano coerente, mas como um instrumento de utilização avulsa para resolver problemas e satisfazer interesses momentâneos, sem uma visão global do espaço no tempo? Como ficaria a cidade se as capacidades edificatórias, as cérceas e as volumetrias fossem estabelecidas de acordo com as necessidades financeiras de cada proprietário?
Independentemente da forma, o que o PP E54 propõe é a ponta visível do que está na sua génese. É a consequência previsível de quem deliberadamente criou um mecanismo para alcançar um objectivo preciso no tempo seguinte, deixando a ideia ilusória de que seriam estudos posteriores (cujos pressupostos, contornos e fundamentação se desconhecem) a concluir por aquilo que, afinal, estava predeterminado!
Disto quase não se fala, mas tal facto é preocupante pelo que permite e significa de desprezo pelo bem comum e pelo interesse público. Demonstra como é possível subverter a ciência urbanística e o poder decisório da autarquia em democracia, na mais tranquila das unanimidades (ou quase).
3. Na mesa coloca-se, também, outra questão: ao contrário do que seria de esperar, quando o Município é chamado (ou a si próprio se chama…) a propor um projecto concreto para uma parte da cidade, assume uma lógica idêntica à do jogo especulativo e reproduz propostas urbanísticas que desvalorizam a cidade, ao mesmo tempo que despreza a implementação de modelos decorrentes da compreensão da especificidade do lugar, no quadro do Desenvolvimento Sustentável
4. Não são razões de natureza funcional no contexto citadino que justificam a saída das instalações desportivas do Varzim e do CDP do Alto de Martim Vaz. São meras conveniências de negócio: o sector imobiliário vê nos terrenos em frente ao mar a última oportunidade interessante para investimento; os clubes vêem nisso a oportunidade para obter receitas que interessam à sua actividade desportiva e, em certo sentido, empresarial. Mas, é intolerável que o Município tenha criado uma regra que, em vez de ter em conta um modelo urbano amigo das pessoas e do ambiente, usa a cidade como instrumento gerador de receitas para proprietários fundiários concretos e exclusivos.
5. Em tempo e inúmeras vezes critiquei esta deriva na concepção e utilização dos instrumentos de planeamento e gestão do território. Primeiro no caso Q&Q. A seguir, denunciando o erro de repetir nos terrenos do Varzim e do CDP a mesma mercantilização da cidade. Num caso e noutro, a mesma falta de modelo sustentável para o desenho da cidade, o mesmo desprezo pelos princípios da universalidade e da abstracção que devem caracterizar qualquer norma regulamentar e a mesma deriva no uso do poder decisório.
Notícias recentes dão conta que, dos 387 apartamentos e meia centena de lojas previstos na Urbanização Q&Q, estarão em construção cerca de duas centenas e apenas 15 terão sido sinalizados para compra (1). A avidez de lucros de uns e a miragem de receitas com taxas e muita irresponsabilidade de outros, levou a passar de 36.000 m2 para 54.000 m2 a capacidade construtiva desse terreno! A forte quebra na procura confirma o excesso e anuncia deixar no nosso quotidiano colectivo, por muito tempo, aquela parte da cidade entretanto esventrada e mal resolvida.
6. No Plano de Urbanização (PU) em vigor incluiu-se uma norma que dá tratamento de privilégio exclusivo aos terrenos do Varzim e do CDP. Por isso, a reflexão é indispensável e pertinente no âmbito da apreciação do Plano de Pormenor da área E54.
Escandalosamente, o PDM, cuja validade se extinguiu em 2005, continua por rever! Mas, surpreendentemente, ao fim de três anos de uma suposta validade de dez, o PU entrou em revisão! Mas, pelo que se sabe, não é para alterar a norma de privilégio criada. Para a área E54 continua a propor um índice de construção a definir em plano de pormenor, tendo como referência 1,2, admitindo que este valor pode ser ultrapassado, no máximo de 50%, se mostrar indispensável à viabilidade de construção dos novos equipamentos. O mesmo é dizer: se for necessário para, através de um negócio imobiliário, se gerar o montante em dinheiro para a construção de novos equipamentos desportivos do Varzim e do CDP!
O precedente começou com o caso Q&Q, quando a Câmara e a Assembleia Municipal abriram a caixa de Pandora. Com a aprovação do PU e com a alteração do uso do solo para os terrenos dos principais clubes poveiros localizados no Alto de Martim Vaz escancararam o caminho à pressão imobiliária. Era provável que, debatendo-se com uma grave crise financeira, o Varzim viesse a promover um negócio imobiliário nos seus terrenos.
7. Não obstante, a ter que tratar do assunto nestas condições, sempre defendi que, na hipótese da saída do estádio do Alto de Martim Vaz, se o clube não construir um novo estádio e utilizar quinzenalmente o Estádio Municipal para realizar os jogos das provas de competição em que participa, deixa de ser necessário o bónus de 50% admitido pelo PU, não é necessário esticar o índice construtivo para lá de 1.2 e até será possível uma solução que privilegie a descompressão urbana e a naturalização do espaço público, assegurando maior qualidade ao modelo urbano a promover.
Limitado a um máximo de 1.2, o clube continuará a fazer um bom encaixe financeiro, o suficiente para resolver o passivo actual, para promover um protocolo de utilização do Estádio Municipal, custeando a respectiva adaptação funcional, para construir uma Academia Desportiva, criando uma nova centralidade numa outra zona do concelho e, eventualmente, para adquirir património que lhe permita uma receita regular capaz de assegurar a sua autonomia e independência financeiras.
Numa tal hipótese, ganharia a cidade! Não teria demasiada densidade de ocupação num litoral já sobrecarregado com volumetrias excessivas, não teria que consumir terrenos no Parque da Cidade e não haveria lugar à duplicação de equipamentos (dois estádios separados por uma centena de metros é um insustentável desperdício de recursos, a exigir ainda elevados custos de manutenção).
8. Sou adepto da distribuição equilibrada das funções de habitação, trabalho, cultura e lazer e da adequação dos níveis de densificação urbana. Por isso, sempre defendi que para o Alto de Martim Vaz não se deveria exceder o índice técnico de 1.2. Assim, em concreto, entendo que a Câmara Municipal tem o dever de elaborar uma alternativa à sua actual proposta urbanística, substituindo o extenso muro de oito andares paralelo à linha de costa, que repetiria o inaceitável corte entre o interior e o litoral que há muito se critica na Avenida dos Banhos. Isso implica a diminuição da carga construtiva - adequando-a também a um tempo de manifesta retracção aquisitiva -, implica melhorar a qualidade do espaço público, criando aberturas e enfiamentos que liguem visual e funcionalmente o interior com o mar e formatando os espaços de contacto e de encontro de acordo com uma escala que compreenda a paisagem, a luz, o sol e o vento como protagonistas fundamentais. Tal poderia passar pela concepção de uma sucessão de pequenas praças contidas por edifícios de baixa cércea e desenho integrador de soluções bioclimáticas.
9. Estamos diante de uma segunda edição do truque da pescadinha de rabo na boca, que poucos denunciaram! Por causa das meias tintas e do irresponsável pânico de fazer rupturas tidas por politicamente incorrectas, nas Normas Provisórias de 2000 criou-se a norma regulamentar que abriu o precedente com o caso Q&Q. Depois, o PU de 2005 abriu a mesma oportunidade ao Varzim e ao CDP. Ambos foram aprovados na Assembleia Municipal por uma maioria que passou muito além do PSD! Não obstante, os que abriram a caixa de Pandora ainda podem corrigir a dimensão dos estragos. Por outro lado, os que aprovaram estes instrumentos de gestão urbanística por distracção e sem medir as consequências, mas que agora não se conformam com os resultados da sua incúria, devem admitir com humildade o erro cometido e agir para mobilizar os cidadãos e motivar os primeiros a rever um Plano de Pormenor que, a concretizar-se tal como nos foi publicamente apresentado, repetirá erros anteriores e continuará a levar a Póvoa pelo caminho da insustentabilidade.

(1) In Comércio da Póvoa, ed. 2009.04.30

6 Comments:

Blogger Luís Gonzaga Castro said...

Excelente artigo.
Já o tinha lido no Comércio da Póvoa e só lamento que não seja possível inverter este ciclo que não nos larga desde o fim dos anos setenta.

15 maio, 2009 14:28  
Blogger Othelo said...

Pasme quem quiser, a mim já não me causa estranheza.
Há muito que tenho vindo a verificar, concretamente nesta cidade, que a opção tomada pelos agente imobiliários, com o beneplácito da autarquia, é a fuga em frente.
Não se vende? Não faz mal constroem-se mais habitações. Casos como o dos terrenos do quintas e agora este dos terrenos do estádio do Varzim são disso bom exemplo.
Para quem se anda a construir?
Para a população não deve ser de certeza. O parque habitacional está cheio de casas desocupadas, algumas delas nunca foram habitadas.
Então para quem se constrói?
Porventura saberão os agentes imobiliários de alguma invasão alienígena eminente e estarão a providenciar o alojamento dessas pessoas?
Antes fosse, a acontecer tal invasão, certamente revolucionaria as coisas. Porventura teriamos um presidente da câmara ainda mais alienigena do que o que temos actualmente, se é que isso é possível.
Sinceramente, a reboque dos sentimentos legítimos de um clube a ter melhores instalações, mas que para as manter vai ter provavelmente de se endividar até ao tutano e depois encerrar portas. Dizia eu, que a reboque disto vamos ser brindados com um elefante branco que com as suas patas enormes não vai só ajudar a matar o fraco e moribundo imobiliário, mas também dar mais uma machadada no pequeno comercio.
Nunca mais aprendemos...

15 maio, 2009 19:36  
Anonymous Antonio Moreira said...

Muitas vezes encontramos no que outros escrevem a expressão do gostaríamos de dizer.É o caso. Depois de ler o que aconteceu na discussão pública do dito plano de pormenor, onde a defesa do mesmo, às vezes de forma grosseira, pertenceu, em exclusivo, a quem com ele lucrava, apelo á consciência dos arquitectos poveiros ou amigos da Póvoa para constituirem uma frente cívica que desmonte a enormidade que nos foi preparada. Acrescento ainda e não é pouco, que me arrepiou ler que o actual Presidente colocava dúvidas sobre o sucesso comercial do projecto. Já pensaram o que será se tal acontecer!!! E a postura dos clubes? Será que lhes passa ao lado a qualidade do projecto, preocupando-se exclusivamente com a rentabilide do mesmo? Que tipo de entidades serão para não se preocuparem com o que se discute?
Macedo Vieira ficou ligado, pela positiva, ao arranjo da marginal sul e ficará marcado pela negativa, já em fim de percurso politico, ao colaborar de forma estreita com este projecto, que constituirá a placa mortuária da urbanização da zona norte. Nela será aposta " Aqui jaz a esperança de viver numa cidade em que dá gosto viver"

15 maio, 2009 19:37  
Anonymous Anónimo said...

boas, amigo ainda a pouco tempo li algures sobre a QUINTA DO AMBRÓSIO em gondomar, um director da sonae a dizer que era facil fazer uma desafectaçao de um terreno destinado a agricola par edificaçao. sera que a lei e igual para todos? acho que nao basta olhar em redor que vemos que isso nao é!!!
sera que se irá erguer uma revoluçao civica na povoa para nao levar esta aberraçao avante!! esperemos que algum iluminado reveja este projecto.

16 maio, 2009 16:11  
Anonymous Anónimo said...

A pouca vergonha está instalada em Portugal. Se rapidamente Espanha não nos salva só nos resta Marrocos.

17 maio, 2009 16:00  
Anonymous Anónimo said...

pelos vistos o consenso está instalado. Para quando a acção? para quando os poveiros unirem-se e marcarem a sua posição?
Acho que já passou há muito o tempo de explicar ao sr macedo vieira que já fez demasiados estragos.

A póvoa merece muito melhor

21 maio, 2009 11:52  

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