03 setembro 2006

IMPOSSÍVEL IGNORAR

Foto de Paulo Correia



É impossível ignorar a reflexão escrita de Leonel Moura, porque é impossível não reconhecer o preconceito, o desleixo e a hipocrisia que, de um modo ou de outro, nos faz cúmplices tantas vezes da fábrica social de homens lixo, nem que seja por omissão distraída!
Com um nó na garganta, partilho convosco o texto que um amigo me fez chegar.
OS HOMENS LIXO
Em 1996 editei um pequeno livro com o título desta crónica onde procureireflectir sobre a exclusão nas sociedades desenvolvidas.
Aí dizia que a realidade económica do nosso tempo tinha criado uma nova condição humana que estava para além da mera pobreza, assumindo características infra-humanas e de que os chamados sem abrigo são o exemplo mais flagrante.
Chamei-lhes homens lixo, não tanto porque vivem em condições deploráveis, tantas vezes em verdadeiras lixeiras, mas acima de tudo porque, tanto para o cidadão comum quanto para as entidades públicas, são encarados como detrito do sistema que se gostaria de varrer para bem longe. Daí a permanente perseguição policial, a interdição a certos espaços públicos, os internamentos forçados, a prisão. A horda de vagabundos, drogados, doentes e inadaptados que povoam as nossas cidades perturbam as consciências e estragam as vistas. Por isso toda a gente os escorraça, quantas vezes de maneira brutal.
Uma tal insensibilidade comunitária é sintoma da época mas sustenta-se na razão económica. Estes vadios não produzem nem consomem. E não fazendo parte de uma sociedade de produtores/consumidores não têm direitos nem voz. Na verdade estão abaixo dos cães e outros animais domésticos a quem são reservadas vastas áreas nas prateleiras dos supermercados e muitas lojas especializadas nos centros comerciais. Um cão doméstico é um pequeno motor da economia. Para ele produz-se comida enlatada, artigos de higiene, vestuário, adereços e muitos serviços, desde cabeleireiros a veterinários. Os animais domésticos geram milhões e uma indústria sólida.
Pelo contrário, exceptuando as instituições de caridade, cuja natureza é essencialmente não-económica ou, se se preferir, onde a economia reverte para o funcionamento da própria instituição, o sem abrigo não gera nenhuma actividade económica digna de registo. Não se produz comida para vadios, abrigos temporários ou roupa apropriada e dos serviços só se conhece a repressão que é geral na missão das polícias. Daí a condição tão desprezível dos sem abrigo na escala social. Cujo paralelo só encontro na imagem, algo cinematográfica é certo, do leproso medieval.
Vem isto a propósito do chamado «caso Gisberta». O sem abrigo morto por um grupo de jovens com particulares requintes de malvadez. Apesar da gravidade dos factos, jovens, alunos de uma instituição católica, tortura continuada durante dois dias, violação colectiva e por fim despejo do corpo para um buraco imundo, o país não está nada comovido. Ao contrário de outros assuntos que tantas vezes excitam os portugueses até os levar ao rubro, e não falo só de futebol, mas porexemplo o desaparecimento da Joana no Algarve ou um incêndio florestal mais intenso, este caso não tem suscitado grande interesse. A notícia já anda pelo rodapé e a tendência para a desculpabilização faz doutrina. A começar pelo Ministério Público que considera que não houve intenção de matar e desvaloriza o assunto. Pede alguns meses de castigo em regime aberto, ou seja, o mesmo que roubar um chocolate na loja da esquina.
Tamanha indiferença social perante um acto tão abominável só se pode explicar pela condição da vítima. Sem abrigo, homossexual e estrangeiro, Gisberta era o pária absoluto, o lixo social, sem nenhum direito, nem dignidade. Por isso os rapazes o trataram como uma mosca a que se habituaram a arrancar as asas e agora a sociedade portuguesa, no seu conjunto, encara o caso como uma maçada, uma nódoa na toalha que é preciso limpar e esquecer depressa. Nem a forte indignaçãointernacional comove as entidades públicas, a classe política e os portugueses em geral.
Sempre pensei, e escrevi, que o Portugal dos bons costumes esconde um vulcão social que pode rebentar a qualquer momento. Apesar da Europa e dos milhões por cá despejados, do ponto de vista humano o país continua a ser habitado por gente muito bárbara, sem educação ou civismo, onde maltratar uma criança é um dever patriota segundo o Supremo Tribunal de Justiça, espancar a mulher é um assunto privado para a polícia, conduzir como um assassino é ser um herói entre osamigos, torturar touros é arte para as televisões, chacinar indefesos animais é um desporto para as elites e cortar árvores um prazer para todos, mas com particular gozo para os autarcas. A cultura do povo humilde continua resumida ao chouriço, ranchos folclóricos e brejeirice do humor televisivo, enquanto os ricos nunca passaram do nível das jantes de liga leve e do pindérico jet7.
Por muito que se diga que o drama de Portugal está na baixa produtividade e no alto défice, a verdade é que o problema de fundo reside no primitivismo civilizacional da nossa sociedade. As décadas vão passando, as gerações vão-se sucedendo e os portugueses continuam genericamente brutos. As excepções só confirma aquilo que é vasto e resiliente. Neste contexto, de facto, que importância tem assassinar um homem lixo, mesmo de forma tão selvagem? Olhem, é menos um a pedir uma moedinha.
Leonel Moura

11 Comments:

Blogger renato gomes pereira said...

E tudo isto por causa de uma estirpe de pessoas que engendraram a nossa sociedade...OS "democratas do cimento"...da "urbe"...Que tudo regulamentam e padronizam... Os Homenns lixo são os que não cabem nem nos vidrões, nem nos pilhões, nem nos outros ões.. não são RRR, recuperáveis, reutilizáveis, recicláveis...!

03 setembro, 2006 15:39  
Anonymous Anónimo said...

Que texto enorme óh garcia!!! Achas que algúem lê isso assim tão grande?

04 setembro, 2006 16:45  
Anonymous Anónimo said...

caro arq.:

deixe-se destas coisas e faça política...

em vez de andar a publicar textos enormes de interesse muito relativo, faça politica, faça oposição, que foi para isso que o povo o elegeu...

eu sei que não é fácil, porque afinal com um partido vazio e oco como o seu, as dificuldades são muitas...

e com as pessoas que o acompanham então não se fala...

em vez destes textos, apresente ideias, lance temas para a discussão, mas temas que digam respeito ao dia a dia dos poveiros...

isso sim, é importante....

ainda não percebeu que assim nunca chegará a lado nenhum... isto não é fazer politica...

uma vez que não tem ninguém na tenente valadim que perceba alguma coisa de politica, dê uma cista de olhos ao pessoal da praça do almada, e de certeza que vai aprender alguma coisa...

até a malta nova da jsd sabe mais de politica do que os seus camaradas de partido...

dê uma vista de olhos ao jornal diario do minho de ontem.. essa malta ainda agora começou, e já está na rua a trabalhar...

isso é que é fazer politica...

abra os olhos, ou limite-se à mediocridade que reina na tenente valadim...

05 setembro, 2006 09:54  
Anonymous Anónimo said...

O caso Gisberta é alarmante, pela indiferença que causou o assasínio de um ser humano. Parece que não se passou nada. O valor da vida humana, não pode ser medido pela orientação sexual, cor da pele sotaque, enfim, por todos os preconceitos que nos tentam impôr, de um moralismo arcaico e bacoco, que só serve para implementar a cultura da ignorãncia e do medo.

A reinserção social deve ser revista verticalmente, sendo que as instituições, mesmo as privadas, se devem submeter a um sistema de avaliação periódica.

Todos somos avaliados, e por vezes, a boa vontade só, não chega...

05 setembro, 2006 11:15  
Anonymous Anónimo said...

Leonel Moura é um autor original. Sendo arquitecto e artista plástico, é também escritor. Tem, aliás, uma coluna no Diário de Negócios Online. Onde li este texto há tempos.

Contrariamente ao que LM escreve, creio que o País se comoveu com o «caso Gisberta». Tal como se comoveu com o «desaparecimento de Joana no Algarve». Ou com «um incêndio florestal mais intenso». E também se comoveu com o facto do Ministério Público ter «desvalorizado o assunto».

Não creio, pois, ser verdade a «indiferença» que ele aqui descreve. E, por maioria de razão, que «a sociedade portuguesa, no seu conjunto, encara o caso (Gisberta) como uma maçada, uma nódoa na toalha que é preciso limpar e esquecer depressa.»

Creio que a perspectiva de Leonel Moura, na análise deste caso, é enviesada. No que é habitual em certos intelectuais. Não apenas da Esquerda. Que é a perspectiva de culpar «o Pai» ou «a sociedade» por crimes pontuais. Julgo ser, categoricamente, o caso.

O resto da prosa segue este raciocínio. Isto é, a habitual comiseração a tudo o que é «português».

Eu, pelo contrário, julgo que os portugueses se comovem. Como os espanhóis, islandeses, canadianos, dominicanos, argentinos, sul-africanos, indianos, malaios. Todos assistiram e vão assistindo ao que se passa ou passou em Srebrenica, Timor, Nova Iorque, Palestina, Beslam, Rwanda, Afeganistão, Libéria, Darfour. Tão impotentes, certamente, como Leonel Moura. E, também, igualmente comovidos.

05 setembro, 2006 16:08  
Blogger CÁ 70 said...

TALIBÃ

Se ler com atenção os posts que aqui vão sendo feitos desde 1 de Dezembro de 2005 - simbolicamente, o dia da Independência -, há desde logo uma proposta implícita quanto aos Princípios e aos Valores na forma de fazer política e no respectivo conteúdo. Além disso, têm- sido feitas inúmeras propostas concretas, as últimas das quais dirigidas ao Objectivo Cidade Saudável...

Quanto à dimensão dos textos, interessa-me mais o conteúdo que a quantidade, pelo que o número de linhas não é determinante. Julgo, aliás que não há nenhuma regra inviolável que obrigue a fazer textos curtos. Aliás, se reparar, o seu próprio comentário é ele próprio extenso quando comparado com outros, e nem por isso deixei de o ler!
Já quanto ao texto de Leonel Moura aqui reproduzido, não sei se o leu. Partilhei-o com a blogsfera porque ele sugere uma reflexão profunda sobre a sociedade em que vivemos e isso vai na linha da mais pura política... sem preconceitos.

Uma coisa é certa, com a tal malta da Praça do Almada, o que poderia aprender agora era o conformismo perante a injustiça, era o oportunismo e o abuso de poder no exercício dos cargos públicos (tão bem traduzido no Caso Dourado, nas remunerações a mais do Dr. Macedo Vieira que o IGAT mandou devolver aos cofres da Autarquia e o senhor se nega a fazer, nos imensos casos de nepotismo já denunciados, enfim...), era a subserviência ao poder económico (veja-se o enorme frete à empresa Quintas e Quintas, traduzida numa vantagem de 18.000 m2 a mais do que seria admíssível, por via de um truque regulamentar feito à medida...), era a arrogância com que se lida com as pessoas, enfim... tudo matérias que eu NÃO QUERO APRENDER, e em relação às quais prefiro continuar a ser o maior de todos os ignorantes.

De qualquer modo, a favor do debate democrático, agradeço o seu comentário, apesar de ter sido feito sem rosto.

J.J.Silva Garcia

05 setembro, 2006 16:57  
Anonymous Anónimo said...

Caro Arq.:

antes de mais, quero dar-lhe os parabens pela coragem de ter publicado o meu comentário...
digo mesmo que subiu na minha consideração...

eu apenas acho que por vezes os seus post divagam por temas que sendo por interessantes, outras nem por isso, não são os que importam...

quando me referi a olhar para a praça do almada, era unicamente para que visse como se faz política...

bem sei que há aspectos que não são correctos, e situações que não são doo agrado de ninguém, mas se for justo tem de reconhecer que lá faz-se política a sério...

o melhor exemplo é da juventude....

quem lê os jornais, e bem sei que muito boa gente que devia ler não o faz e depois acaba por fazer figuras tristes, certamente reparou que há bem pouco tempo houve eleições na jsd...

quando o que se estava à espera era que tudo contiuasse na mesma, deram uma pedrada no charco e parece que estão a trabalhar, e com vontade...

por isso é que lhe recomendei passar os olhos pelo diario do minho de 2ªfeira...

tudo bem que estão a começar, mas mostram que tem vontade de fazer politica...

bem sei que no seu partido isso é impossivel...

uma vez que naquele grupo, poucos são aqueles que minimamente percebem de política, poucos são aqueles que mostram vontade de fazer alguma coisa, e quanto a ideias, é melhor nem falar...

ainda estou para preceber como é que o sr arq aguenta tanta mediocridade....

em vez de conversas balofas, sigam os bons exemplos... e trabalhem...

ps: tenha cuidado com um pequeno pormenor... acautele-se, porque com tanta mediocridade à sua volta ainda acaba igual... sem ofensa, claro...

obrigado pela sua atenção...

05 setembro, 2006 19:10  
Blogger renato gomes pereira said...

JJ os Psds que o talibã fala nõa vão lá das canetas...pelo menos na politica que os socialistas querem...o que eles querem é ser satelites de novos "caciques"...sem menospreso pelo verdadeiros caciques( chefes Indios- protegidos pela FUNAI -organização governamental brasileira deproecção dos costumes indios)

06 setembro, 2006 08:44  
Anonymous Anónimo said...

pelos vistos o sr talibã, cujo nome que usa está de acordo com o conteúdo dos comentários, está muito preocupado com o que se passa na tentente valadim.
Mas tanta preocupação deu cegueira...

06 setembro, 2006 12:50  
Blogger Manuel CD Figueiredo said...

O texto refere-se a um caso triste conhecido, que ocorreu no Porto (e se tivesse sido na Póvoa?), e que constitui um dos pontos centrais da POLÍTICA: o valor da pessoa humana!
Ninguém se deve alhear de situações como esta (em todas as suas vertentes), e não basta ao poder político afirmar que uma situação assim «é uma preocupação que temos presente». É preciso reflectir e agir.
Estamos perante um tema de reflexão, que nos é proposto. Cabe-nos a nós, cidadãos, agir, enquanto o poder político que temos continua a assobiar para o lado.

06 setembro, 2006 12:57  
Anonymous Anónimo said...

Bom ponto de vista! qaundo os esrangeiros são perseguidos e maltratados, quando os homosexuais sao rabetas e panascas, o arquitecto assume-se como defensor dos humildes

06 setembro, 2006 14:48  

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