22 janeiro 2006

O DESAFIO DE JÚDICE

Será que Macedo ouviu?


“Além disso, vi, debaixo do sol, a injustiça ocupar o lugar do direito e a iniquidade ocupar o lugar da justiça.”
Eclesiastes, 3 – 16 – Velho Testamento

1.
José Miguel Júdice esteve na Póvoa. A convite da Câmara Municipal, o Bastonário da Ordem dos Advogados veio “ao encontro da Justiça e do Estado de Direito”; era o título da conferência.
Não sei se, nos ventos que sopram, poderia encontrar de boa saúde uma e outro neste pedaço de terra poveira e, sobretudo, entre as quatro paredes daquele Salão Nobre que simboliza o poder, exercido em nome do povo, mas tantas vezes distante da expectativa que, no mesmo povo, os actores do momento lhe criaram ilusoriamente quando lhe agarraram o voto.
A Justiça é um pilar insubstituível ao Estado de Direito e ambos são seiva da Democracia: o que se faz de ambos podem fortalecê-la ou envenená-la! Assim, se a neutralidade galopante, quimicamente pura, é um cancro que contamina e corrói a sociedade, quando aceite tacitamente, torna possível tudo e o seu contrário, esbate as fronteiras do ilícito, amarrota e vilipendia o Estado de Direito.
Nós sabemos de quantas vezes, nos mais diversos sectores da vida - também, na Administração Central e das Autarquias Locais -, são ignorados manhosamente os princípios e as regras, diante do encolher de ombros colectivo.
No entanto a Justiça deveria começar e afirmar-se nas boas práticas do quotidiano de todos nós e das instituições, dando cor a uma sociedade progressivamente humanista e com os mais elevados padrões civilizacionais.
É que, por muito que os Tribunais venham a funcionar melhor – e muito há a fazer, reconhecida a extensão das debilidades que os minam – a Justiça tem de ser, prioritariamente, uma construção da vida e em todas as vertentes da vida. A utopia será construir uma sociedade onde os Tribunais sejam inúteis, não pela sua falta de eficácia – como vai acontecendo nos dias que correm – mas, porque fomos capazes de edificar uma sociedade de valores, centrada no respeito do outro, que é condição da nossa própria existência como seres humanos e cidadãos.
Se o Estado de Direito precisa de outro comportamento de todos nós, isso passa por recentrar as atitudes em princípios e valores que não deixaram de existir, mas estão apenas congelados em nome de uma neutralidade intelectual que, vencida pela inconsciência da ilicitude, tudo permite!

2
Para Júdice, “o Estado de Direito é como o oxigénio, está por todo o lado e nunca o vemos”. Dele depende o exercício da Cidadania que precisa, igualmente, da resposta pronta e fundamentada da Justiça. Mas, a Júdice não seria possível referir-se à Justiça em Portugal sem denunciar com veemência as suas maleitas neste tempo de contradições e amnésia de referências.
Não nos disse, todavia, mais do que o que estamos “carecas” de saber: que o acesso à Justiça é caríssimo e marginaliza quem não tem meios económicos, reduzindo-lhe o suporte da cidadania, que os processos se arrastam pegajosos por tempos intermináveis, que as investigações são feitas às três pancadas e quase sempre não se apuram os factos com o rigor que se impunha, que os procedimentos são complexos e muitas vezes roçam a irracionalidade, pelo anacronismo dos métodos e a inércia comportamental dos agentes que se movem nas estruturas funcionais dos tribunais... E, desacreditada a Justiça, fica fragilizada a Democracia!
Mas, se é indispensável uma profunda reforma das mentalidades dos actores que interagem no sistema judiciário, é igualmente insubstituível introduzir mecanismos de racionalidade nos procedimentos judiciais, o que passa pela modernização dos meios e dos instrumentos ao serviço desses actores.
Ora, ao contrário da história do “burro do inglês”, que na ânsia de reduzir até à exaustão os custos com a comida do animal, acabou por deixá-lo morrer no preciso momento em que ele se estava a habituar a viver sem comer, não é possível aumentar a qualidade sem meios. E os meios implicam dinheiro, não os cortes cegos que o Governo PSD/PP tem feito. Por isso, apesar de ideologicamente próximo deste Governo, Júdice critica o facto de a Justiça ter visto reduzido significativamente o seu orçamento para 2004.

3.
Para ilustrar o quotidiano dos tribunais, Júdice usou a ironia e o humor enquanto contava uma série de pequenas histórias que acentuam o ridículo de situações insustentáveis. Ao ouvi-las, Macedo Vieira, o anfitrião, riu à gargalhada pelas cócegas que lhe fizeram. A boa disposição inundou o Salão Nobre.
Mas, nos derradeiros momentos da Conferência, quando Júdice, em tom grave e sério, fez o desafio de uma prática de inconformismo, de exigência de rigor, de refundação de um quotidiano assente em valores e princípios claros, e nos instigou a lutar por um sistema mais justo, intolerante com a ilicitude, contra a ambiguidade traiçoeira e oportunista e as distorções do exercício do poder, Macedo Vieira emudeceu o riso e colou o olhar no chão, não sei se por mimetismo, se porque viajou inevitavelmente e célere pelos casos que têm serpenteado nos corredores da Casa Grande.
Ou talvez vivesse nesse preciso momento um acto de secreta e solitária contrição.
Quem dera que fosse! Por ele, que ganharia paz interior, a nossa estima e reconhecimento. Por todos nós, que veríamos de novo renovado o caminho da credibilidade das instituições.
Entre tanto que há a mudar, talvez, nesse arremedo de transparência e inconformismo com a ambiguidade, transformasse em actos concretos o reconhecimento de que, no Caso Dourado “a decisão pode ser contestada, do ponto de vista ético” (1) . Talvez esclarecesse como pôde ficar indiferente à afirmação de António Dourado de que no final de 1999 “não tinha condições de saúde elementares para prosseguir essa batalha na Câmara Municipal, nessa medida utilizei o problema das cinco faltas para me aposentar.” (2) Talvez esclarecesse de vez quem é o Vereador anónimo que afirmou ao Público que o processo disciplinar “foi um expediente” para que Dourado pudesse garantir que a pensão não iria cifrar-se num valor “muito mais reduzidodo que o salário que recebia.” (1) Talvez esclarecesse os fundamentos de Gil da Costa quando disse ao Póvoa Semanário que “tudo leva a entender que houve algum acordo entre o Presidente da Câmara da Póvoa e o António Dourado, para que isto ocorresse desta forma.” (2) Desse modo, contribuiria para a consolidação do Estado de Direito e da Democracia, ajudaria o Ministério Público e far-se-ia Justiça. E talvez corrigisse esse erro intolerável de nomear Dourado em circunstâncias dúbias para a Presidência da Varzim Lazer – a mesma empresa municipal a que o Tribunal de Contas recentemente apontou irregularidades e desvio do fim público para que existe.
Talvez repudiasse a cegueira que o levou a subscrever a formalização de uma regra feita à medida, que beneficia exclusivamente duas empresas locais em milhões de euros, possibilitando urbanizações que comprometem a funcionalidade da cidade e a nossa qualidade de vida.
Talvez corrigisse o erro da Bomba de Gasolina que substituirá um Parque de Estacionamento Periférico útil à estratégia de acessibilidade e mobilidade da cidade, preferindo as alternativas apresentadas. E não alterasse o fim para que foi expropriado esse terreno (pago em 1995 pela ridícula quantia de 750$00 /m2(!), na sequência de um longo processo de expropriação que se iniciou em 1977 em nome do interesse público) para, sem consulta à Assembleia Municipal, o concessionar a uma empresa privada, que aproveitou a oportunidade de um negócio chorudo. Talvez melhorasse assim, a vida na cidade. E evitaria com certeza riscos desnecessários com consequências perversas. Depois do que se passou, a Câmara não está livre de um processo com custos para a Autarquia se a proprietária expropriada decidir usar as prorrogativas que a Lei lhe garante e vier a usar do direito de regressão por vício de desvio de fins.
E talvez seguisse, por fim e sem ambiguidades, o seu legítimo destino empresarial à frente da Imobiliária, clarificando o seu papel na sociedade poveira.

É que, de outro modo, não teremos motivos para acreditar que a Justiça é possível.
E confesso, pelo que a mim diz respeito, não queria ser derrotado pela inevitabilidade afirmada por Inês Pedrosa: “os verdadeiros abusos de poder não se detectam – nem vão a julgamento, nem são condenados em tribunal.”

Notas
(1) in Público, edição de 2000.02.13
(2) in Póvoa Semanário, edição de 2000.02.17
(3) in Abusos de Poder, Revista Única 2004.01.17

2 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Meu caro, parabéns pelo seu blog. Apenas uma ligeira correcção, o Dr. José Miguel Júdice já não é, presentemente, o bastonário da ordem dos advogados portugueses. Cargo desempenhado pelo Dr. Rogério Alves. Aqui fica o reparo

25 janeiro, 2006 12:04  
Blogger renato gomes pereira said...

JJ...Os advogados são quem mais luta pela justiça e os seus bastonários são osadvogados dos advogados...

Muita gentediz mal da justiça mas está redondamente enganado...

Nãio é a justiça que está moribunda..é a Administraição Pública...

reformas ou revoluções,desburocratizaçõesetc...não vão lá...

Importa acreditar nos principios econceitosjuridicos..fazer fé neles e não nas leis...

As leis podem ser más.. o direito nunca...O direito é justo.. a Justiça é o Direito...

Só que...fazem-se leis na assembleiadarepublica e nos governos e ninguém é responsabilizado pelas más leis que produz...

E depois a administração publica que só funciona no primado da mera execução da lei .. sem olhar se ela é conformeo Direito e a Justiça, acaba por ser a executora dos errosda AR e dos governos sucessivos...

28 janeiro, 2006 23:03  

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