O DESAFIO DE JÚDICE
Será que Macedo ouviu?
“Além disso, vi, debaixo do sol, a injustiça ocupar o lugar do direito e a iniquidade ocupar o lugar da justiça.”
Eclesiastes, 3 – 16 – Velho Testamento
“Além disso, vi, debaixo do sol, a injustiça ocupar o lugar do direito e a iniquidade ocupar o lugar da justiça.”
Eclesiastes, 3 – 16 – Velho Testamento
1.
José Miguel Júdice esteve na Póvoa. A convite da Câmara Municipal, o Bastonário da Ordem dos Advogados veio “ao encontro da Justiça e do Estado de Direito”; era o título da conferência.
Não sei se, nos ventos que sopram, poderia encontrar de boa saúde uma e outro neste pedaço de terra poveira e, sobretudo, entre as quatro paredes daquele Salão Nobre que simboliza o poder, exercido em nome do povo, mas tantas vezes distante da expectativa que, no mesmo povo, os actores do momento lhe criaram ilusoriamente quando lhe agarraram o voto.
A Justiça é um pilar insubstituível ao Estado de Direito e ambos são seiva da Democracia: o que se faz de ambos podem fortalecê-la ou envenená-la! Assim, se a neutralidade galopante, quimicamente pura, é um cancro que contamina e corrói a sociedade, quando aceite tacitamente, torna possível tudo e o seu contrário, esbate as fronteiras do ilícito, amarrota e vilipendia o Estado de Direito.
Nós sabemos de quantas vezes, nos mais diversos sectores da vida - também, na Administração Central e das Autarquias Locais -, são ignorados manhosamente os princípios e as regras, diante do encolher de ombros colectivo.
No entanto a Justiça deveria começar e afirmar-se nas boas práticas do quotidiano de todos nós e das instituições, dando cor a uma sociedade progressivamente humanista e com os mais elevados padrões civilizacionais.
É que, por muito que os Tribunais venham a funcionar melhor – e muito há a fazer, reconhecida a extensão das debilidades que os minam – a Justiça tem de ser, prioritariamente, uma construção da vida e em todas as vertentes da vida. A utopia será construir uma sociedade onde os Tribunais sejam inúteis, não pela sua falta de eficácia – como vai acontecendo nos dias que correm – mas, porque fomos capazes de edificar uma sociedade de valores, centrada no respeito do outro, que é condição da nossa própria existência como seres humanos e cidadãos.
Se o Estado de Direito precisa de outro comportamento de todos nós, isso passa por recentrar as atitudes em princípios e valores que não deixaram de existir, mas estão apenas congelados em nome de uma neutralidade intelectual que, vencida pela inconsciência da ilicitude, tudo permite!
2
Para Júdice, “o Estado de Direito é como o oxigénio, está por todo o lado e nunca o vemos”. Dele depende o exercício da Cidadania que precisa, igualmente, da resposta pronta e fundamentada da Justiça. Mas, a Júdice não seria possível referir-se à Justiça em Portugal sem denunciar com veemência as suas maleitas neste tempo de contradições e amnésia de referências.
Não nos disse, todavia, mais do que o que estamos “carecas” de saber: que o acesso à Justiça é caríssimo e marginaliza quem não tem meios económicos, reduzindo-lhe o suporte da cidadania, que os processos se arrastam pegajosos por tempos intermináveis, que as investigações são feitas às três pancadas e quase sempre não se apuram os factos com o rigor que se impunha, que os procedimentos são complexos e muitas vezes roçam a irracionalidade, pelo anacronismo dos métodos e a inércia comportamental dos agentes que se movem nas estruturas funcionais dos tribunais... E, desacreditada a Justiça, fica fragilizada a Democracia!
Mas, se é indispensável uma profunda reforma das mentalidades dos actores que interagem no sistema judiciário, é igualmente insubstituível introduzir mecanismos de racionalidade nos procedimentos judiciais, o que passa pela modernização dos meios e dos instrumentos ao serviço desses actores.
Ora, ao contrário da história do “burro do inglês”, que na ânsia de reduzir até à exaustão os custos com a comida do animal, acabou por deixá-lo morrer no preciso momento em que ele se estava a habituar a viver sem comer, não é possível aumentar a qualidade sem meios. E os meios implicam dinheiro, não os cortes cegos que o Governo PSD/PP tem feito. Por isso, apesar de ideologicamente próximo deste Governo, Júdice critica o facto de a Justiça ter visto reduzido significativamente o seu orçamento para 2004.
3.
Para ilustrar o quotidiano dos tribunais, Júdice usou a ironia e o humor enquanto contava uma série de pequenas histórias que acentuam o ridículo de situações insustentáveis. Ao ouvi-las, Macedo Vieira, o anfitrião, riu à gargalhada pelas cócegas que lhe fizeram. A boa disposição inundou o Salão Nobre.
Mas, nos derradeiros momentos da Conferência, quando Júdice, em tom grave e sério, fez o desafio de uma prática de inconformismo, de exigência de rigor, de refundação de um quotidiano assente em valores e princípios claros, e nos instigou a lutar por um sistema mais justo, intolerante com a ilicitude, contra a ambiguidade traiçoeira e oportunista e as distorções do exercício do poder, Macedo Vieira emudeceu o riso e colou o olhar no chão, não sei se por mimetismo, se porque viajou inevitavelmente e célere pelos casos que têm serpenteado nos corredores da Casa Grande.
Ou talvez vivesse nesse preciso momento um acto de secreta e solitária contrição.
Quem dera que fosse! Por ele, que ganharia paz interior, a nossa estima e reconhecimento. Por todos nós, que veríamos de novo renovado o caminho da credibilidade das instituições.
Entre tanto que há a mudar, talvez, nesse arremedo de transparência e inconformismo com a ambiguidade, transformasse em actos concretos o reconhecimento de que, no Caso Dourado “a decisão pode ser contestada, do ponto de vista ético” (1) . Talvez esclarecesse como pôde ficar indiferente à afirmação de António Dourado de que no final de 1999 “não tinha condições de saúde elementares para prosseguir essa batalha na Câmara Municipal, nessa medida utilizei o problema das cinco faltas para me aposentar.” (2) Talvez esclarecesse de vez quem é o Vereador anónimo que afirmou ao Público que o processo disciplinar “foi um expediente” para que Dourado pudesse garantir que a pensão não iria cifrar-se num valor “muito mais reduzido” do que o salário que recebia.” (1) Talvez esclarecesse os fundamentos de Gil da Costa quando disse ao Póvoa Semanário que “tudo leva a entender que houve algum acordo entre o Presidente da Câmara da Póvoa e o António Dourado, para que isto ocorresse desta forma.” (2) Desse modo, contribuiria para a consolidação do Estado de Direito e da Democracia, ajudaria o Ministério Público e far-se-ia Justiça. E talvez corrigisse esse erro intolerável de nomear Dourado em circunstâncias dúbias para a Presidência da Varzim Lazer – a mesma empresa municipal a que o Tribunal de Contas recentemente apontou irregularidades e desvio do fim público para que existe.
Talvez repudiasse a cegueira que o levou a subscrever a formalização de uma regra feita à medida, que beneficia exclusivamente duas empresas locais em milhões de euros, possibilitando urbanizações que comprometem a funcionalidade da cidade e a nossa qualidade de vida.
Talvez corrigisse o erro da Bomba de Gasolina que substituirá um Parque de Estacionamento Periférico útil à estratégia de acessibilidade e mobilidade da cidade, preferindo as alternativas apresentadas. E não alterasse o fim para que foi expropriado esse terreno (pago em 1995 pela ridícula quantia de 750$00 /m2(!), na sequência de um longo processo de expropriação que se iniciou em 1977 em nome do interesse público) para, sem consulta à Assembleia Municipal, o concessionar a uma empresa privada, que aproveitou a oportunidade de um negócio chorudo. Talvez melhorasse assim, a vida na cidade. E evitaria com certeza riscos desnecessários com consequências perversas. Depois do que se passou, a Câmara não está livre de um processo com custos para a Autarquia se a proprietária expropriada decidir usar as prorrogativas que a Lei lhe garante e vier a usar do direito de regressão por vício de desvio de fins.
E talvez seguisse, por fim e sem ambiguidades, o seu legítimo destino empresarial à frente da Imobiliária, clarificando o seu papel na sociedade poveira.
É que, de outro modo, não teremos motivos para acreditar que a Justiça é possível.
E confesso, pelo que a mim diz respeito, não queria ser derrotado pela inevitabilidade afirmada por Inês Pedrosa: “os verdadeiros abusos de poder não se detectam – nem vão a julgamento, nem são condenados em tribunal.”
Notas
(1) in Público, edição de 2000.02.13
(2) in Póvoa Semanário, edição de 2000.02.17
(3) in Abusos de Poder, Revista Única 2004.01.17
(2) in Póvoa Semanário, edição de 2000.02.17
(3) in Abusos de Poder, Revista Única 2004.01.17
2 Comments:
Meu caro, parabéns pelo seu blog. Apenas uma ligeira correcção, o Dr. José Miguel Júdice já não é, presentemente, o bastonário da ordem dos advogados portugueses. Cargo desempenhado pelo Dr. Rogério Alves. Aqui fica o reparo
JJ...Os advogados são quem mais luta pela justiça e os seus bastonários são osadvogados dos advogados...
Muita gentediz mal da justiça mas está redondamente enganado...
Nãio é a justiça que está moribunda..é a Administraição Pública...
reformas ou revoluções,desburocratizaçõesetc...não vão lá...
Importa acreditar nos principios econceitosjuridicos..fazer fé neles e não nas leis...
As leis podem ser más.. o direito nunca...O direito é justo.. a Justiça é o Direito...
Só que...fazem-se leis na assembleiadarepublica e nos governos e ninguém é responsabilizado pelas más leis que produz...
E depois a administração publica que só funciona no primado da mera execução da lei .. sem olhar se ela é conformeo Direito e a Justiça, acaba por ser a executora dos errosda AR e dos governos sucessivos...
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