04 janeiro 2006

"PELO SONHO É QUE VAMOS"





A Custódio Sá


O dia desistia da luz e entardecia pelo escuro adentro, no momento de chegar a Valência. Com o Mediterrâneo ao fundo, mil quilómetros para o lado oposto do outro mar que conheço melhor e da outra escuridão que se fez na minha cidade. Mil quilómetros, vencidos num instante pelo frio inesperado que começou na Póvoa e fez tremer o fim de tarde.
Fica sempre escuro e frio quando a morte nos rouba um amigo! Murcha a rosa-dos-ventos, os ponteiros agitam-se e enlouquecem, o norte fica sem norte, demora a sentar-se de novo.
Recusamos acreditar, porque dói acreditar.
A morte é uma curva na estrada, morrer é apenas deixar de ser visto, dizemos para que não doa tanto. E dizemo-lo porque, de qualquer modo, a foice lunar e fria não arranca tudo da vida. Ao seu golpe mesquinho resiste a memória e o sentimento, o mesmo é dizer, o lado essencial.
A última vez que vi o Custódio foi na tarde da véspera de Natal. No íntimo fica-me dele a energia do Amigo, capaz de proximidade e de presença na praça da solidariedade. Fica-me o olhar do sonhador. E fica-me um dos lumes que estimulou e ajudou a consolidar a minha vontade de cidadania.
O Custódio amava a utopia como método, tinha a frieza da lucidez, tentava a arte do convencimento e fazia-o com as cores da paixão que colocava nas causas que o animavam.
Dos livros que me ofereceu, tomo o que simbolicamente melhor me serve para a memória que escolho guardar. Na primeira folha em branco depois da capa, dedicou-mo em Setembro de 1993, com um abraço, fazendo-me “companheiro de sonhos nesta cidade que gostaríamos à medida das nossas gentes.”
Hoje é a minha vez de partilhar o poema essencial que, desse livrinho de Sebastião da Gama, confirmará a nossa cumplicidade no gosto pela cidade e pela utopia.

Pelo sonho é que vamos,
comovidos e mudos.
Chegamos? Não chegamos?
Haja ou não haja frutos,
pelo Sonho é que vamos.

Basta a fé no que temos.
Basta a esperança naquilo
que talvez não teremos.
Basta que a alma demos,
com a mesma alegria,
ao que desconhecemos
e ao que é do dia-a-dia.

Chegamos? Não chegamos?

- Partimos. Vamos. Somos.


O Sonho, in Pelo Sonho é que Vamos, Sebastião da Gama

foto de Jorge Casais