22 janeiro 2006

COLARINHOS BRANCOS E PÉS DE BARRO

“É cedo demais para fazermos alguma coisa e esperamos até que seja tarde demais”
MIA COUTO

1.
É útil mostrar o lodo, para que a interrogação sobre o Sistema se torne audível.
Um Quadro Superior, tido como exemplar, habituado a acumular em muitas centenas de contos o salário com horas extraordinárias e emolumentos, teve a percepção de que esta seria a altura propícia para se retirar!
Sabia que, acabando o cargo de Notário Privativo, na contabilidade da futura pensão de reforma deixaria de contar com os gordos emolumentos que recebera, durante anos, sempre que a Câmara fazia Contratos com fornecedores dependentes de Escrituras Públicas.
Mas, sair voluntariamente, não era possível ainda. A aposentação voluntária obriga a dois pressupostos simultâneos : a idade e o tempo de serviço! Teria que esperar!
Por isso, construiu um truque. Um truque que só seria eficaz se contasse com a cumplicidade do Executivo que, podendo optar por outras, haveria de escolher a única medida que servisse os seus intentos!
Faltou cinco dias seguidos sem justificação: pena grave que viola o princípio da assiduidade. Tão mais grave quanto praticada por um Quadro Superior, responsável pelo Serviço de Pessoal, a quem deve incutir o sentido da responsabilidade e da dedicação.
O Inquiridor municipal moveu-lhe um Processo Disciplinar.
O castigo decidido, neste caso foi o prémio pretendido : aposentação compulsiva!
Perante as vantagens, a mancha no currículo passou a coisa menor. Mas, por cautela, a Acta que conta da decisão final, ao contrário do que é normal, não refere o nome de António Dourado numa tentativa de manter a discrição.
Ironicamente, não proceder disciplinarmente contra o infractor teria sido a sua pena!
E, se não houvesse cumplicidade acordada, o castigo poderia ter sido a Demissão. Mas isso significaria o afastamento da Função Pública. O desemprego. E a espera pela idade da reforma. Certamente, com menos proventos.
Se não ficasse clara a escandalosa combinação, bastaria ouvir Dourado dizer ao jornalista que no final de 99 o seu estado de saúde se agravara e vendo que “não tinha condições de saúde elementares para prosseguir essa batalha na Câmara Municipal, nessa medida utilizei o problema das cinco faltas para me aposentar.” (1)
Confissão de um acto de PREMEDITAÇÃO, que teve a CONIVÊNCIA do Executivo, como confirma o Vereador Anónimo (quem foi que elegeu o Vereador Anónimo ?), dizendo que o processo disciplinar “foi um expediente” para que ele (Dourado) pudesse garantir que a pensão não iria cifrar-se num valor “muito mais reduzido” do que o salário que recebia.” (2)
Insaciável a ambição, tolheu-se o discernimento. Colada a “forretice” à alegada competência, de seguida Vieira nomeou Dourado para Presidente da Administração de uma Empresa Municipal, apesar de estar alegadamente doente, cansado, disponível para maus exemplos de falta de assiduidade e que, pelos vistos, deixara de interessar ao Município!
Mais meio milhar de contos para Dourado! O Estado é coisa abstracta. O Erário Público coisa de ninguém. E se não tem dono, ninguém há-de levar a mal que melhor sirva aos amigos!
Mas, se Dourado era o técnico precioso para a dura tarefa de conter as despesas numa Empresa Municipal difícil de governar, porque é que Vieira não o transferiu para esse cargo, em Comissão de Serviço, simplesmente? Porque isso não seria suficientemente rentável para Dourado? Afinal, a “forretice” a ele não se aplica?
Macedo, traído pela própria consciência, já respondeu deixando escapar que a decisão pode “ser contestada, do ponto de vista ético”. (2)

2.
Será possível a Política sem Ética, Senhor Doutor?
Os factos demonstram iniquidade. Actos de nepotismo que negam a defesa do interesse público.
Feita a crítica no plano ético, importa que também o seja no plano político, pela apresentação de uma Moção de Censura ao Executivo.
E, os indícios disponíveis exigem ainda o apuramento de responsabilidades.
O Legislador quando fez a Lei, tinha por objectivo penalizar o infractor. É esse o espírito da Lei. No entanto, num passo de magia, o feiticeiro municipal transformou o castigo num prémio! Na verdade não há perversidade na Lei: o que aconteceu foi o uso perverso da Lei, o que é muito diferente!
Neste sentido, no passado sábado em programa da Rádio Mar, referi que para merecerem credibilidade, impõe-se que os Partidos Políticos e o Presidente da Assembleia Municipal (a quem cabe fiscalizar os actos do Executivo) apresentem queixa junto do Ministério Público, tendo em vista IMPUGNAR contenciosamente o acto de aposentação compulsiva por vício de DESVIO DE PODER.
O PSD, refém da Câmara, está mudo! O que poderia dizer o recentemente eleito presidente da Comissão Política Aires Pereira desta história e do Inquiridor municipal Aires Pereira?
Todavia, se a laranja mecânica bloqueou, o que pensa quem neste partido sempre primou pela dignidade?
A CDU, num passo importante, fez a denúncia através de Comunicado na Comunicação Social. O CDS-PP considera que este é um “acto simulado, que constitui uma fraude à lei gravosa para o erário público”. (1)
Mas, se a denúncia não basta para se ser diferente, o Partido Socialista surpreendeu positivamente, ao anunciar através de um comunicado lido hoje na Comunicação Social que irá participar os factos às entidades competentes, já que há indícios de que a Câmara Municipal e particularmente o seu Presidente conduziram este processo de forma pouco transparente e mesmo eticamente reprovável. (3)

3.
O erro táctico foi ficar demasiado à vontade e rematar a trama em Janeiro. Fevereiro é que é o mês dos gatos, e fora de tempo eles deixam o rabo de fora. Os centímetros suficientes para escancarar o abuso que leva ao descrédito das instituições.
Mas, a causa estará na teia de cumplicidades que, como defende Pacheco Pereira, se geram no modelo consensual de constituição dos executivos municipais: ao contrário de gerar participação, rigor e eficácia, tem tornado pouco coerente os Executivos, dilui responsabilidades partidárias e favorece o sistema clientelar, as cunhas, a partilha de benesses e interesses, o nepotismo e a corrupção.
O passado recente demonstra que, com consequências para além do tempo exacto em que aconteceu, as oposições, ao participarem num contrato político com o partido que exerce o Poder, deixam de fazer oposição e votam todos os documentos fundamentais da gestão municipal. As críticas ao executivo desaparecem ou atenuam-se. Os partidos respectivos reduzem a sua actividade política aos períodos eleitorais de quatro em quatro anos, com a tarefa quase sempre impossível e incompreendida junto da opinião pública, de nessa altura criticar tudo aquilo em que tinham participado e sufragado com o seu voto.
Ainda a propósito, Pacheco Pereira afirma com agudeza : “os únicos defensores dos executivos consensuais no PSD que eu compreendia eram os presidentes de Câmara eleitos pelo partido que explicavam com clareza que esse sistema era essencial... para domesticar a oposição socialista e comunista. “ (4)

4.
Não podemos continuar indiferentes à ideia de que se podem cometer todos os atropelos impunemente. Em política, a legitimidade eleitoral não prescinde da observância ética da Lei.
A sensação que se tem é que estas pessoas sem escrúpulos partem do princípio de que somos néscios e estamos permanentemente distraídos. E que, se o rabo do gato nos roçar o nariz, tudo se resume a um questão de tempo. Esbracejamos e ralhamos durante algumas semanas. A eles basta-lhes um já treinado exercício de paciência, e esperar que todos se calem, se retomem os sorrisos e os cumprimentos, e tudo fique na mesma.
Ora, nem todos estão dispostos a isso!
Não me parece possível o exercício do Poder, em representação de um povo, sem uma reserva moral que deixe inequívoco que, o que suporta as opções, é sempre e inalienavelmente o INTERESSE PÚBLICO em geral e dessa Comunidade em concreto e nunca o interesse pessoal, próprio ou dos amigos.
Macedo Vieira perdeu esse estatuto de reserva moral que eu supunha que tivesse!
Este é uma grave brecha na admiração que muitos sentiam pela sua figura.
Só poderá recuperar o respeito da opinião pública, se demitir António Dourado e reformular a Varzim Lazer quanto ao conceito e quanto à estrutura e composição orgânicas, e se demarcar desta aldrabice demitindo-se!
Se, para tanto tiver uma réstia de dignidade!

Notas
1. in Póvoa Semanário, edição de 17.02.2000
2. in Público, edição 13.02.2000
3. in Rádio Mar, edição de 21.02.2000
4. in História de proveito e exemplo, Público, 2000.02.17