22 janeiro 2006

OS MENINOS D'OIRO DO PODER

Visita oportuna a um texto de 88 publicado no “Comércio da Póvoa”



“Na política e na História há as ideias, as doutrinas, os métodos, os programas, e depois há a Ética, que é uma disciplina sempre subsidiária, sem vida própria.(…) Pertence ao domínio da sensibilidade: até onde se pressionar antes de começar a magoar. “ (**)


1.
Há vícios que resistem, contaminam os homens e insistem como repetições teimosas, penetrando os interstícios das oportunidades.
Neste ar que se respira deslizam odores que estimulam a memória, e motivam a reescrever o que antes serviu para envergonhar a pequenez dos que esfumam as fronteiras da dignidade, em bebedeiras de ambição!
Da memória recupero, por isso, o texto que publiquei há uma dúzia de anos.
Dedico-o aos que ganham “prémios” de bom comportamento pelos serviços prestados, mas que não se inibem de lixar a vida aos outros! Aos que existem sobretudo para sustentar o Poder, seja ele qual for, tenha ele a forma que tiver!
Dedico-o com a certeza de que, ao recortar o perfil desses, se clarifica o próprio retrato dos outros, dos que, por causa da mediocridade política, da falta de escrúpulos e de ética, não prescindem daqueles para sobreviver!

2.
Dizia assim:
“Aquela mania de coleccionar camisolas do crocodilo verde, e de ansiar por sorrisos nos festins da gente ilustre, havia de o pôr frente a frente com o Diabo. Ele tece-as e as benfeitorias têm um preço que é preciso pagar com a alma, talvez o preço de deixar de pertencer aos que são verdadeiramente homens.
Era um bom rapaz, julgávamos. Nas conversas amenas trocadas à mesa do café, explicava que havia um lugar para o rigor sem ser burocrata, e apontava para uma organização do Poder ao serviço dos cidadãos, a sua única razão de ser, como lhe ensinava um belo sonho da esquerda romântica.
Teria sido um bom rapaz... até que o Diabo lhe ofereceu o lugar de chefia, à semelhança do xerife mandão que gostava de ser quando, pequeno, brincava aos cow-boys. É então, que estranha força lhe transformou a ideologia, agora cata-vento, habituando-o a não discutir... e a obedecer... de preferência sendo capaz de se antecipar e adivinhar os desejos dos tiranos a quem prometeu vassalagem, para lhes provar, provadinho, que o seu apoio lhes era incondicional. A verdade é que sozinho não ia mudar o mundo; e porque haveria de o mudar se agora estava do lado de cima? Na quinta de George Orwel era bem agradável estar acima dos outros animais.
De bom rapaz, que se calhar nunca foi, não tardou a fazer-se menino d’oiro do poder.
O preço devido pela farda de comando era ver-se lacaio, sempre que se cruzava com o espelho no corredor. Incomodativo no início, tornou-se porém num hábito sem significado depois que substituíra o espelho por uma cópia a cores de Gioconda de Da Vinci, onde acreditava que estampava o próprio sorriso amarelo ...
Agora não sei se dorme de noite, mas já come com talhares de prata na mesa altíssima de um olimpo desnaturado, e vai fazendo banquete das honrarias do momento ao custo de ser útil ao poder : tarefa que aprendeu muito bem e desempenha com muito zelo.
Parece-lhe que vale a pena: no fundo, a fraqueza intelectual e o vazio cultural tinham fome e este truque de enganar pela barriga é sensacional.
Entretanto, como a psicologia garante, de um lado do síndroma da chefia sentava-se a subserviência e do outro soltava-se a prepotência. Castigava, então, cobardemente, os de baixo na razão directa do acto de se humilhar aos de cima, que preciso lhe era um escape capaz para os dias em que o mar se recusava a ser de rosas, como num aviso de mostrar o futuro inevitável.
Da América Latina mandou vir o “método do pontapé do chefe” (de autor desconhecido) em três volumes, que já é a sua obra preferida. A literatura, por ordem sua (sempre a sua maravilhosa ordem!) veio de avião, e parou brevemente na terra de Clinton para se transformar em disquete : que ser ditador por computador é bem melhor.
Assim, depois de rastejar na espiral dos de cima, regressa sempre sôfrego à sua caixa de surpresas e faz jogos ininterruptos com os teclados frenéticos, procurando a receita mais refinada que lhe sirva, para compensação, à sua próxima aventura de pequeno ditador.
Aos que a fatalidade impusera o papel de cidadãos, começou a atirar com olhares de desprezo. Construía congeminações em torno de lhes fazer ver que era ele quem mandava... ( nos intervalos de obedecer aos de cima ... ) Fazia-lhes sentir que o remédio era falarem-lhe de mansinho, de joelhos no chão e ar suplicante, não fora acordar-lhe na caixa craniana o papão de areia. É que a sua disponibilidade de menino de oiro do poder era para os de cima e não para os de baixo.
Suprema ideia foi, então, mandar para a fogueira os outros colegas que insistiam num funcionalismo público ao serviço dos cidadãos, essa ralé que “tem de ser castigada”.
Pouco a pouco tinha a certeza de que ficaria na história como o grande reformador da administração.
E pouco a pouco se afastava da hipótese de ver o grande erro, que é pensar que esse poder de circunstância dura uma eternidade.
Isto, já que o outro erro é não lembrar que se aqui é menino d’oiro do poder, também é cidadão (indefeso) , diante de muitos outros poderes de quem hipocritamente reclama competência e cortesia.”
3.
Afinal, como no primeiro parágrafo, frente a frente com o Diabo, a silhueta frivolamente rocócó recebeu agora nova benfeitoria.
Pagou-a com a alma!
Voluntariamente!



notas
(*) J. J. Silva Garcia, in O Comércio da Póvoa de Varzim de 1988.11.30
(**) Paulo Moura, in A Ética da chama acesa, Público, 2000.02.13