18 dezembro 2005

Bush estica... com o dedo no gatilho

Pouco antes do início da invasão ilegal do Iraque pelo exército norte-americano escrevi este artigo, posteriormente publicado no Póvoa Semanário.
1.
Nas Lajes, a Declaração de Guerra tira a máscara!
Chega a noite.
Não me refiro à obscuridade cíclica do movimento de rotação da terra, mas à que acontece pela tentativa cínica dos guardiões do Império em encarcerar a luz num ponto inalcançável!
Releio um recorte do Expresso. Donald Rumsfeld defendeu no Capitólio a opção pelos canhões. As despesas militares do governo americano vão passar de 379,9 mil milhões de dólares em 2003 para 483,6 mil milhões em 2009!
Nunca o militar penetrou a economia de modo tão radical” - diz o missionário A. Zanotteli (1) que, referindo o Banco Mundial, lembra que bastariam 13 mil milhões de dólares para se resolver os problemas da fome e da saúde.
Que mundo é esse que o Império se propõe moldar?

2.
O rearmamento militar serve a poderosíssima indústria de material de guerra.
Miguel Sousa Tavares defende que a história dos conflitos deste século só pode ser verdadeiramente entendida quando cruzada com a história empresarial dos fabricantes de armamento. Recordo e passo ao artigo de Nuno Guerreiro na Grande Reportagem de Junho de 1999. “Os Estados Unidos são o país do mundo que em mais conflitos se envolveu nos últimos cem anos. O século XX começa com tropas americanas a lutar nas Filipinas e acaba com os soldados de Clinton em combate nas Balcãs. Entre uma e outra intervenção, a América foi aprendendo a transformar a guerra numa fonte de receitas que hoje é crucial para o país. Actualmente, as empresas de armamento que fornecem o Pentágono estão entre os principais financiadores de Republicanos e Democratas. Só nos últimos dois anos, os gigantes da indústria bélica gastaram cerca de cinquenta milhões de dólares a mover influências junto de membros da Casa Branca – ou seja, quem decide onde, quando e como se travam os conflitos da América.” (2)
O século XXI começa com tropas americanas no Afeganistão e no Iraque...

3.
Regresso angustiado a um artigo recente de Alfredo Barroso (3). Bruce P.Jackson é presidente do Committee for the Liberation of Iraq do qual, ironicamente, não faz parte um único iraquiano, mas serve para apoiar a política belicista de Bush e tentar convencer o mundo da utilidade da guerra. Ao mesmo tempo, é presidente do US Committee to Expand NATO e, curiosamente, vice-presidente responsável da Lockheed-Martin que é, tão só, o principal fabricante de armamentos do planeta: só em 2002, os seus contratos militares ascenderam a 17 mil milhões de dólares!
Ocorre-me uma palavra: OBSCENO!

4.
A guerra contra o Iraque está decidida muito antes do 11 de Setembro. Não vale invocar este trágico e condenável acontecimento para justificar uma intervenção violenta como se o Iraque constituísse uma ameaça aos EUA: “seria necessário mostrar que existe uma ligação entre o Iraque e a Al-Qaeda. Até agora, nicles. As provas apresentadas são, pura e simplesmente ridículas.” (4)
Inventa-se o conceito de guerra preventiva: mais vale bater antes que nos batam! Mas, que mundo será este uma vez sujeito a um incomensurável poderio militar unilateral que, em cada momento, decide quem são os seus amigos e quais os inimigos a destruir, preventivamente?
O frenesim dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha em volta da ONU é apenas uma despudorada farsa no complexo processo de tentativa de iludir a opinião pública e tornar aceitável uma intervenção que até João Paulo II considera imoral e ilegal!
A guerra terá que acontecer para mostrar as mais recentes e sofisticadas máquinas de matar e destruir. Um Iraque fragilizado será o palco ideal para experiências reais que demonstrem a sua eficácia.
Mas, na noite escura em que nos querem enfiar, o mais certo é que Saddam, tal como Osama Bin Laden, acabará por se safar. Serão homens, mulheres e crianças como nós a sofrer dilacerado pela dor e pela morte, desta vez às mãos da democracia americana, que o toma como cobaia das novas tecnologias militares.
Os vassalos do Império, num estratagema de funil, atiram para o lado de Saddan quem não concorda com a guerra. O Primeiro-Ministro Durão Barroso envergonha Portugal: apoia a guerra à margem da Lei. Numa formulação simplista, hipócrita e uma desonestidade intelectual desmedida, argumenta que “temos que estar com os americanos porque eles são uma democracia e o Iraque é governado por um ditador sanguinário”.
Saddam é um impiedoso ditador! É um assassino cujas piores violências puderam beneficiar, a seu tempo, de apoio dos governos americano e britânico.
Lembro-me dos EUA encararem com prazer a guerra de Saddan contra o Irão, após sofrerem a humilhação de verem a sua embaixada em Teerão em situação de refém, vindo a fazer dele um aliado. E lembro-me dos Curdos, 4.000 dos quais foram assassinados com gás por ordem sua sem a menor reacção americana...
Sem dúvida que os iraquianos terão tudo a ganhar livrando-se dele.
Mas, haja coerência: se a justificação da guerra é Saddan ser um ditador sanguinário, proponha-se idêntica intervenção para derrubar outras ditaduras igualmente atentatórias dos direitos humanos, muitas das quais amigas dos EUA. Como esquecer duas décadas de apoio americano à Indonésia do facínora Suharto e a cumplicidade com a ocupação assassina de Timor?
Como ignorar, agora, a chantagem sobre os países do Conselho de Segurança da ONU e a ameaça de agir unilateralmente se a decisão não lhe for conveniente, quando muitos se esforçam por reforçar a importância do Direito Internacional? E como aceitar a impunidade dos EU e dos seus soldados perante o Tribunal Penal Internacional, ao mesmo tempo que Portugal, Espanha e Grã-Bretanha, entre outros, estão sujeitos a serem julgados e condenados pelo crime de participarem nesta guerra ilegal?
E como ignorar que, ao mesmo tempo que os EU se dispõem a desarmar os outros, não ratifiquem o Tratado de Não Proliferação das Armas Nucleares, continuem o programa da Guerra das Estrelas e se recusem a assinar qualquer acordo para deixar de produzir minas anti-pessoais que têm estropiado e matado milhares de civis?
Como esquecer que o governo norte-americano, considerando-se acima de todos, não ratifica o Tratado de Quioto, quando tantos se esforçam por limitar a emissão de gases com efeito de estufa, ou como ignorar que impõe aos outros regras económicas, mas as viola sempre que colidem com os seus interesses nacionais?
Que nova ordem internacional nos propõem? Será que o mundo ganhará em depender cada vez mais da obscena vertigem imperialista de Bush?
É a este Império que Durão quer entregar a alma de Portugal espezinhando o sonho europeu?

5.
A não ser em legítima defesa, não creio que a guerra resolva alguma coisa. As bombas não são varinhas mágicas de fazer democracia, são instrumentos de sangue, morte e destruição.
É cada vez mais difícil acreditar na inocência e nas boas causas da política externa dos EUA e na justificação “humanitária” de intervenções como a que está anunciada sobre o Iraque.
As verdadeiras motivações são de domínio geoestratégico desta região do mundo. E, sobretudo, de controlo das fontes energéticas, na sequência do relatório do Grupo de Desenvolvimento da Política Energética Nacional dos EUA, redigido por Richard Cheney e publicado em 17 de Maio de 2001. E esta guerra cheira a petróleo que tresanda!
Mas, também, a certeza de que o que agora se vai destruir vai trazer a oportunidade para o chorudo negócio da reconstrução. 100.000 milhões de dólares é uma estimativa que anima o sector da construção civil dos EUA e seus aliados!
Pelo meio, mais de 500.000 mortos iraquianos: peanuts!

6.
Bush saberá que o Iraque tem tão perigoso armamento. Porque o forneceu e porque a CIA o confirma. É provável que Saddam tenha armas de destruição maciça, tal como a Coreia do Norte, a Índia, o Paquistão, Israel...
Mas, qual é o país que tem o maior e mais sofisticado arsenal de armas de destruição maciça do mundo?
E porque é que essas armas nas mãos de Bush e da extrema-direita americana no poder são inofensivas e as outras nas mãos de Saddam são perigosas? Saddam não está a atacar ninguém, mas são os EU que se preparam para invadir o Iraque e instalar aí as condições para o controlo militar e político da região e das principais jazidas de petróleo.
Quem foi, afinal, o único país do mundo que usou a bomba atómica contra populações civis? Que o digam os mortos e os estropiados de Nagasaki e Hiroshima.

7.
Depois de um encontro com o Papa em 19 de Fevereiro, Kofi Annam afirma que a guerra só é concebível se a alternativa for pior. O relatório de Hans Blix admite que estão a ser feitos progressos nas inspecções e que não existe qualquer evidência da preparação de armas nucleares pelo Iraque. Pedem mais tempo. A França e a Alemanha não se cansam de apelar a uma solução pacífica. As Nações Unidas consideram que o desarmamento está a ocorrer e as inspecções funcionam. Mas, impacientes, os EU já decidiram pela guerra desde o primeiro dia em que enviaram para a região as primeiras forças militares.
Durão Barroso oferece as Lajes para palco da Cimeira de Guerra. Portugal fica fragilizado e os portugueses envergonhados por um governo surdo ao seu apelo à Paz. Definitivamente ligado aos agressores, quando poderia ter reforçado o seu papel no plano dos princípios, fica fora da Lei pelas mãos de um Governo estranhamente servil.
Com a certeza de que a diplomacia não vai convencer os Senhores da Guerra, com 250.000 soldados e um arsenal sofisticado e ilimitado às suas portas, como se pode esperar que Saddan destrua todas as armas que possa possuir?
Como irá reagir o tirano Saddan debaixo dos milhares de mísseis do fundamentalista Bush que “não tem apenas a certeza de que Deus está do seu lado, mas recebeu do próprio Deus a ordem directa para atacar o Iraque”? (5)

8.
Ante a mega operação de propaganda e do auto ensurdecer de governantes servis, os Senhores da Guerra fazem manobras de diversão enquanto consolidam um colossal complexo militar às portas do Iraque.
Mas, nesta noite tão triste, uma coisa é certa: apesar dessa máquina diabólica de manipular, milhões e milhões de pessoas, as mais diversas em todo o mundo, não reconhecem justiça nem propósito aceitável nesta guerra e, pelas formas mais criativas, formam uma onda única de humanismo, de apelo à concertação e à paz.
Porque o único desafio que vale a pena para os homens civilizados é a construção da paz, e não dar alimento à saga louca de multiplicar a morte!



1. In Público, edição de 2003.01.05
2. Nuno Guerreiro, in “Os Senhores da Guerra”, Grande Reportagem, edição de Junho de 1999
3. Alfredo Barroso, in “Bombas novas”, Expresso, edição de 2003.03.01
4. Edurado Prado Coelho, in “A guerra mais uma vez”, Público, edição de 2003.02.11
5. Frei Bento Domingues, OP, in “A voz de Deus”, Público, edição de 2003.03.16